sábado, 8 de janeiro de 2011

Atravessando o Rovuma rumo à Tanzânia (Dia 0)


Uma das regras básicas para viajar por qualquer país é... trazer dinheiro no bolso. Pode parecer óbvio mas por vezes o hábito ocidental de usar os cartões de plástico em todo o lado faz esquecer que há dinheiro em papel e nestas andanças é fundamental andar com mais do que julgamos ser o essencial. Umas centenas de dólares americanos num compartimento "secreto" para usar em caso de emergência deveria ter sido considerado por mim. Devia, pois...

Até este momento tem sido muito fácil, em todos os paises por onde tenho passado, ir a um ATM e levantar a quantia que preciso, em moeda local.
No caso de Mueda não existia ATM. Uma vez que já tinha os meus 50 USD para o visto da Tanzânia, necessário para entrar no país, e uns poucos meticais para a gasolina, segui para a fronteira confiante que, apesar de pouco, o dinheiro que tinha daria para cobrir todas as despesas até à próxima cidade com caixa automática.
Acontece que não dava e eu já devia saber melhor.

A estrada até à fronteira é péssima. Existem troços com muita areia, por vezes com camadas de pó semelhante a "pó talco" onde as rodas se enterram e as quedas tornam-se frequentes.


Um troço bom na "estrada" até à fronteira com a Tanzânia

Por uma razão que desconheco a poucas centenas de quilómetros de todas as fronteiras por onde tenho passado (talvez a excepção seja aquela que usei entre a Namíbia e a África do Sul) as estradas  tornam-se muito díficeis, com areia ou com autênticas crateras no asfalto, tornando a condução uma autêntica prova de resistência para mim e para a mota. Sempre que rumo em direcção a uma fronteira de um qualquer país em África vou sempre mentalizado que irei enfrentar o pior. Como se o país onde ainda estou me lançasse o seu último desafio; assim foi ao sair de Angola, da África do Sul a entrar no Lesoto, de Moçambique para a Tanzânia e mais para a frente da Tanzânia para o Quénia. Todos se mostraram desafios dificeis de serem ultrapassados. 

Desse modo, levantar a mota carregada, uma e outra vez na areia, muitas vezes sem conseguir ter base de fixação dos pés para erguer a mota, tornou-se muito desgastante e quando por fim cheguei à fronteira estava coberto de poeira, suor e exausto.

Um sorriso falso depois de ter estado 30 minutos a tentar levantar a mota na areia
 Era quase meio-dia e depois de quase duas centenas de quilómetros de terra batida e areia dei por mim a pisar de novo asfalto; um novo e brilhante asfalto. Dentro de um pequeno casinhoto de palha dois guardas fizeram-me parar e identificar-me. O registo da matricula da mota, nome e nacionalidade foi feito num grande bloco.
Deram-me os parabéns: fui o primeiro português a atravessar de mota a Ponte da Unidade, mais recente ligação entre Moçambique e Tanzânia.

Guardas junto da fronteira 

Segui uns quilómetros mais à frente até ao posto de emigração, local onde me disseram que teria de receber o carimbo de saida de Moçambique. Chegado lá deparei-me com as instalações, uma dezena de gabinetes em alvenaria de blocos, pintados, com bom aspecto mas vazios.
Um pouco mais à frente, dentro de um jango três homens dormiam de cuecas aproveitando a sombra e a brisa vinda do Rovuma, um pouco mais abaixo.
Um deles chamou-me quando eu já me preparava para subir na mota e atravessar a ponte. Eram os funcionários da alfândega.

Enquanto se vestiam pediram-me os documentos: passaporte e a folha de importação temporária da mota.

"Isto já não está válido!" - disse-me um deles examinando com atenção o documento de importação.

A verdade é que me esqueci de revalidar este documento, apenas válido por 30 dias, quando pedi a extensao do meu visto para moçambique.

-"Tens de pagar a multa de 5000 meticais. Não te posso deixar passar" -disse-me um deles muito sério.

- "Pois, mas não me podes fazer isso. Não tenho mesmo dinheiro aqui comigo. Temos de resolver isso de outro jeito. O pior é que nem tenho dinheiro para te dar uma ajuda para me ajudares a mim..." -disse-lhe, abrindo a carteira e mostrando os poucos meticais que tinha.

"Depois de ter feito este caminho todo temos de arranjar uma solução. Tenho muito pouco dinheiro que preciso para por alguma gasolina mais à frente até poder chegar a uma cidade e usar o ATM". - Rematei.

Entretanto o meu passaporte foi levado por outro funcionário para receber o carimbo de saida do país.

Apesar de ser uma fronteira com muito pouco movimento um carro chegou, vindo da Tanzânia em direcção a Moçambique, com dois senhores. Quando fui a um dos gabinetes buscar o meu passaporte um dos senhores estava sentado a ser atendido.
Perguntou-me se estava tudo bem e expliquei-lhe o que se estava a passar.

"Dá-lhe algum dinheiro que ele deixa-te passar"- disse-me o senhor.

"O problema é que tenho muito pouco dinheiro. O pouco dinheiro é para a gasolina e mesmo assim não sei se chega. A cidade mais próxima do lado da Tanzânia com ATM é Masasi a quase duzentos quilómetros e nem sei se vou conseguir aí chegar."

"Espera, eu empresto-te algum dinheiro para a gasolina" -disse-me o senhor.

Mostrei-me envergonhado e reticente em aceitar mas vi que era a minha única chance de chegar a Masasi. Assim, aceitei a oferta com alguma vergonha mas imensa gratidão.
Falando um pouco mais com o funcionário que me teria de "facilitar" a saída de Moçambique com um documento caducado e depois de ele me ver sem alternativas (depois de eu lhe ter recusado como presente as garrafas metálicas de águas que tenho acopoladas a uma das malas) este deixou-me seguir com um sorriso no rosto.

"O presente fica para a próxima...resto de uma boa viagem!"- disse-me

Agradeci-lhe, agradeci a todos e parti, atravessando o Rio Rovuma, entrando com um sorriso nos lábios na Tanzânia.


Atravessando o Rovuma pela Ponte da Unidade


Logo do outro lado da ponte instalações semelhantes às de Moçambique estavam à minha espera. Mas aqui, em vez de funcionários em cuecas a dormirem debaixo de um jango, embalados pela brisa do Rovuma, esperavam-me uma dezena de tanzanianos de fato e a gravata, dentro das suas salas com ar condicionado.
Em cerca de 5 minutos, depois de pagar os 50 USD caribaram-me o visto permitindo-me permanacer 90 dias no país. Agora teria de me dirigir à sala do lado para legalizar a entrada da mota. Nesta altura, confesso que fui com um frio na barriga, com receio que exigissem algum documento, algo que eu não tivesse como o Carnet.
O facto de só ter practicamente o dinheiro que o bom senhor tanzaniano me ofereceu também não ajudou a que entrasse naquela sala tranquilo.

Quando abri a porta dois funcionários estavam na sala. Durante os primeiros quinze minutos estive  a explicar de onde vinha, porque estava a fazer a viagem, os países que tinha atravessado, à quanto tempo durava, quanto tempo mais iria durar, qual o destino final,  que tipo de mota era aquela, quanto custava, qual era a velocidade máxima, como conseguia levar a bagagem suficente para tanto tempo de viagem, etc. A conversa estava boa, eram simpáticos. Deram-me os parabéns por ser "tão aventureiro e corajoso".
Por fim, todos sorridentes, pediram-me o Carnet.

"Não tenho Carnet. A mota tem a matrícula de Angola e lá ninguém sabe o que é isso, ninguém passa esse documento."- disse-lhes.

"Ok, não há problema. Passamos-te um documento de importação temporária válido por 30 dias e extensivel a 90."

Sorri. Saiu-me um peso enorme de preocupação dos ombros.

"Este documento custa 25USD". - Diz-me um dos simpáticos funcionários.

"Pois, mas  eu não tenho dinheiro... Não sabia que tinha de pagar tal coisa. Tenho muito pouco e era para a gasolina. Não chegam a 10 dólares."- desculpei-me eu.

Disse-lhes que no pior dos casos iria a Masasi, duzentos quilómetros de terra batida mais à frente. Iria apanhar o "autocarro" no dia seguinte e iria levantar o dinheiro necessário e regressaria no final da tarde. Falei de modo sincero. O que poderia mais fazer eu?!

Depois de mais de trinta minutos ali na sala a discutirem a melhor maneira de conseguirem que eu entrasse no seu país olharam para mim e disseram que tinham de me ajudar.

"Vamos emprestar-te o dinheiro que está em falta. Com os teus 10 dólares mais os nossos 15, já consegues entrar" - Disseram. E remataram. "Somos todos seres humanos e vemos que estás em dificuldade. Iremos ajudar-te".

Agradeci-lhe muito (como devem imaginar) e despedi-me calorosamente. Estava finalmente na Tanzânia. Mesmo com pouca gasolina, a olhar de minuto a minuto para o painel, consegui fazer os duzentos quilómetros em terra batida até Masasi e levantar dinheiro. Enchi o depósito e almoçei. Eram cinco da tarde e tinha pouco tempo de claridade para alcançar Lindi. Quase duzentas pessoas rodearam a mota enquanto almoçava em Masasi, todos a apreciavam. Tinha de ser rápido e apesar de o meu dia já ser longo montei uma vez mais e rodei o punho com vontade até Lindi, onde cheguei já o sol se tinha posto.


 A rolar (finalmente) na Tanzânia rumo a Lindi

2 comentários:

  1. Gonçalo como vês ainda se encontra gente boa, por essas terras longinquas.Continuação de boa viagem e boa disposição beijos Lina

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  2. amigo,
    nós agora estamos de saida para o malawi para renovar o visto e aproveitar e conhecer mais uma conta deste grande colar de pérolas africanas! vamos de carro e no regresso voltamos pela Ilha de Moçambique, a ver qual é a mais bonita...!
    continua a ir pela sombra e sempre abençoado pela teu estrelinha que anda lá em cima a olhar por ti.
    aguardamos sempre por um regresso teu ao Ibo.
    muitos bjs e abraços meus e do Xano,
    Rita

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