segunda-feira, 26 de setembro de 2011

"Coração na Guiné" (*)


Depois da entrada fácil e sem problemas no Senegal apontei para Ziguinchor, capital da região de Casamance, no sul do país.

Grande parte do território do Senegal está dividido em duas regiões, separadas pela Gâmbia, um pequeno país ao longo do rio com o mesmo nome.
Conterei mais tarde como foi a minha estadia naquela região, conhecida pelas suas verdes paisagens e praias fantásticas, das melhores de toda a costa atlântica, bem como o resto da viagem pelo Senegal, descrevendo as suas paisagens e seus ritmos. Passarei também pela Gâmbia, o mais pequeno país em África.
Mas por agora vamos seguir para a Guiné, rumo a Bissau.

Se para entrar no Senegal não tive qualquer problema, o que dizer em relação à Guiné...
O visto para aquele país foi obtido em Ziguinchor em 5 minutos e pouco mais de 20 Euros.
Na fronteira, a cerca de 30 quilómetros de Ziguinchor, depois de carimbar a entrada na migração e depois de alguma conversa em bom português com os guardas no local, fui às instalações da alfândega para tratar da papelada da mota. À porta, sentado numa cadeira a "passar pelas brasas" estava o responsável, que depois de eu perguntar quais seriam os documentos necessários para a entrada da mota no país, se limitou a dizer:

-"Não é preciso nada. Podes entrar."

Estava assim na Guiné, rumo a Bissau, rolando por uma estrada alcatroada de fazer inveja à maioria por onde passei em África e naquele momento senti de novo a estranha sensação de estar em casa.
O prazer de conduzir numa terra desconhecida mas de uma certa maneira familiar, com placas em português por todo o lado, com o privilégio de conseguirmos comunicar na nossa língua, ajuda a que pareça menor a distância até Portugal e a que nos sintamos melhor.

Senti a mesma intimidade com Moçambique e claro com Angola, que considero a minha segunda casa. Não tenho dúvida que seria muito mais complicado ter vivido ali tanto tempo se não tivesse encontrado tantas coisas semelhantes a "casa", ao nosso país.
E em relação a isso não sou diferente da maioria dos portugueses: agarro-me muito à ideia de Casa, Família e Amigos e dou muita importância a coisas que parecem tão estranhas aos olhos de um francês ou de um alemão como por exemplo, reivindicar o facto de termos em Lisboa a luz mais bonita de todas as cidades, ou no norte a melhor comida do mundo e no Alentejo o melhor vinho e de sermos, sempre sombra de dúvida (nem sequer se admite discussão :) ) o povo que melhor recebe quem vem de fora.
Esse é o Fado e a Saudade que trazemos connosco; é cultural e genético. (e que se lixe a Crise!)

Não é de estranhar, assim, ter gostado da Guiné desde o primeiro momento.
Alguns quilómetros depois da fronteira, parei para pagar a portagem (?! para terem uma ideia, não me lembro de pagar "esse tipo de coisa" nos últimos 43.000 km´s) da grandiosa Ponte de S. Vicente que atravessa o rio Cacheu.
Esta construção foi feita pela empresa Soares da Costa, tem 730 metros de comprimento e é de facto uma obra muito bonita. Até há muito pouco tempo a travessia era feita numa barcaça e esta ponte, assim como outra que também existe naquela estrada, veio facilitar a circulação naquela região.
Quando estava a pagar, brincando com o homem que me cobrava o valor, dizendo-lhe que uma mota não deveria pagar portagem, ou pelo menos não o valor de um carro (lembrando-me do que vergonhosamente acontece em Portugal), este pergunta-me de onde sou em Portugal.

- "Sou de Lisboa."

- "Mas Lisboa, onde?"- perguntou

- "Vivo em Queluz, uma cidade perto de Lisboa."

- "Queluz-Belas ou Queluz-Massamá?"- perguntou-me.

Eu não pude conter um enorme sorriso. Ali estava eu, na Guiné, longe ainda da cidade, a milhares de quilómetros de Queluz, num ambiente completamente diferente e alguém me faz uma pergunta destas.
Entendem-me agora melhor quando falo em cumplicidade entre países e na sensação que sinto aqui de estar mais perto de casa?!
Pelo que me explicou o João, agora um cobrador da portagem daquela ponte, já esteve duas vezes em Portugal. Setúbal e Queluz foram os sítios onde ficou por ter ali família e disse-me ainda:

- "És português, somos irmãos. Onde vais ficar em Bissau? Se não tens hotel podes ficar em minha casa ou em casa de um amigo. Algo se vai arranjar."

Disse-lhe que não queria incomodar e que iria procurava um hotel barato em Bissau. Prometi que depois lhe ligaria para bebermos uma cerveja e conversarmos um pouco.
Ele disse que o fizesse pois queria-me mostrar a cidade onde nasceu e que lhe deveria ligar assim que chegasse a Bissau.
O João foi, assim, o primeiro amigo que fiz na Guiné.

Uns quilómetros à frente um polícia mandou-me parar e começou por dizer, num inglês arcaico.

- "Good morning!!"   

Pode falar português, disse-lhe.
Contei-lhe a viagem que fiz, os países por onde passei e que queria visitar a terra dele antes de seguir para Portugal.
Conversamos animadamente na berma da estrada e quando nos despedimos pediu-me para me despedir dele aquando do regresso ao Senegal.
Depois deixou-me ainda um aviso.

- "Vai devagaré à Bissau. Tem muitos gados no caminho".

Agradeci o conselho e fiz os restantes quilómetros até Bissau atento "aos gados" que se iam atravessando no caminho, à semelhança do que acontece em todos os países de África.

Já em Bissau, depois de algum tempo à procura de um hotel, encontrei um sítio com o preço "menos escandaloso" que consegui e que me pareceu ter as condições mínimas exigidas para ali passar uns dias.
Bissau é uma cidade muita cara para os visitantes e os valores que ali praticam alguns hotéis e restaurantes estão completamente desproporcionados com o resto das coisas destinadas à população geral.
Como exemplo, uma família normal conseguiria pagar a mensalidade da sua casa com o valor cobrado por um hotel razoável na cidade.

Quanto à cidade de Bissau, gostei para dizer a verdade, sem muito bem saber porquê.
Apesar do calor e da humidade brutal que tornavam as tardes ao sol insuportáveis, as esplanadas, a cerveja fresca, a mancarra (amendoim) e a gentileza natural dos guineenses ajudaram a tornar especial a minha estadia ali.
Assim deixei-me ficar uns dias, mais do que tinha previsto.
E a verdade é que não há grandes (ou pequenas) atracções por ali, não há museus ou monumentos interessantes que roubem muito tempo a quem por lá passe. De facto, não há grande coisa para ver nem tão pouco a acontecer culturalmente na cidade.

Simplesmente fiquei em Bissau porque me sentia bem. Fosse a passear pelas avenidas na parte mais antiga da cidade, ir comer ao final do dia ao Bairro do Caracol (onde comi o melhor cabrito de toda a viagem), ir até ao porto ver o que os pescadores tinham apanhado nesse dia, sentado na esplanada a beber cerveja enquanto via o futebol na televisão ou simplesmente quem passava, o meu tempo estava ocupado e não me aborrecia. 
Infelizmente não existem praias em Bissau (bem, o que nós conhecemos como praias), caso contrário arriscava-me a prolongar ainda mais a minha estadia ali.
Ah, e havia a Kizomba e as discotecas ajudaram a que o tédio não se instalasse. :)

Bissau é a maior cidade da Guiné-Bissau e está localizada no estuário do Rio Geba. Tem também o maior porto, é o centro administrativo e militar da região e à semelhança de Luanda, em Angola, é onde tudo acontece naquele país.
Ao que parece Bissau terá sido fundada em 1687 pelos portugueses, tornando-se um porto fortificado e o centro de comércio naquela região.









Alguns locais emblemáticos da cidade de Bissau



As bonitas meninas da mancarra




A zona mais antiga de Bissau, perto do porto










Porto de Bissau


Para além do território continental, a Guiné tem ainda cerca de oitenta ilhas que constituem o Arquipélago dos Bijagós, separado do Continente pelos canais do rio Geba, de Pedro Álvares, de Bolama e de Canhabaque.
Do pouco que tinha pesquisado acerca de Bijagós pareceu-me interessante dar lá um pulo, aproveitar uns dias de praia e conhecer uma região diferente (pelo que li também um povo de cultura completamente diferente).
O barco até à ilha principal parte no final da semana e regressa no domingo e ainda cheguei a ir até à "bilheteira" mas no final não comprei nem bilhete, nem tão pouco fui a Bijagós.
Estava em Bissau e ainda não conhecia bem a cidade. Queria ficar por lá durante o fim-de-semana, beber um copo na noite de Bissau, ver o Benfica, ficar pelas esplanadas e pelas cervejas. Um pouco de ócio não me faria mal e epá, tinha passado tantas aventuras e desventuras no Burkina e no Mali que queria mesmo era um pouco de monotonia, de "vida boa", sem me preocupar em ter de procurar hotel, ter de comer enlatados e fruta, beber água quente, etc.
Não, nada disso. Bijagós vai esperar, até à próxima. E fiquei mesmo por Bissau.

Mesmo a calhar, um casal de amigos, um cabo-verdiano e uma guineense, que conheci assim que cheguei e que na altura tinha "convidado" a fazer uma cachupa para o fim-de-semana, ligou-me a cobrar o evento.
Assim, passei o domingo na companhia de uma simpática família entre uma cachupada cabo-verdiana e umas garrafas de vinho tinto português.
Melhor não podia ter sido e ainda vieram duas garrafas de ponche de calabaceira, produção caseira do próprio Manu, o amigo cabo-verdiano.
Na aparelhagem o som ia  variando entre kizomba e funaná (sempre no máximo, ao melhor estilo africano) e a digestão da cachupa era ajudada por uns passinhos de dança. E como já tinha saudades  destes ritmos e de uma tarde assim.
Bijagós ficou, sem qualquer arrependimento, para ver numa próxima vez.






A confeção e o resultado final (até dá água na boca)


Não há picante?
Sem problema, já se arranja.



Bonita família aquela


O grupo representando a Guiné, Cabo-Verde e Portugal


Manu, produtor caseiro de bebidas de Cabo-Verde 
e "um gajo porreiro"


O que não podia ficar para outra ocasião era o sul da Guiné.
Depois de passar uns dias em Bissau queria ver um pouco mais do país e, uma vez que a maior parte das principais estradas estão alcatroadas e em boas condições, decidi visitar a região sul.

Segui dessa forma até ao "Saltinho", nome dado a uma queda de água no rio Corubal, perto de Bambadinca e Xitole, povoações de média dimensão, já perto da Guiné-Conacri.
Não haverá muitos sítios turísticos na Guiné-Bissau e este deve ser dos únicos fora de Bissau, esquecendo Bijagós, capaz de atrair "turistas".
Aquela região é, de facto, muito bonita e nesta altura de chuvas, torna-se incrivelmente verde...e molhada, mas muito bonita.

Perto do local existe um clube de caçadores, com quartos e restaurante onde fiquei alojado. Aquelas instalações foram construídas por militares portugueses durante a guerra colonial e serviam de posto para protegerem a única ponte jamais construída em todo o território guineense, naturalmente um apetecido alvo militar naquela altura.
Ao contrário de muitas pontes destruídas que vi em Angola e Moçambique, esta continua por lá e ainda bem, especialmente para a população.
Nas margens do rio, alguns pescadores arriscam a vida, nesta altura do ano em que o caudal é monstruoso, para apanhar o prato do dia e, claro, passei algum tempo junto deles a perceber como o fazem.
Apesar dos insistentes convites e do calor que estava naquela tarde, preferi não arriscar o mergulho. Vejam as fotos e percebam porquê...
Durante a época seca as margens estão repletas de crocodilos e vêem-se alguns hipopótamos. Parece que também isso vai ficar para outra vez.



Cartaz "Só na Paz há Vida"e a Miss a calibrar os pneus com uma máquina automática
de pressão (e acreditam que até funcionava?!)



Antiga Ponte General Craveiro Lopes e passagem antiga
(nesta altura submersa)



Todas as atenções iam para a Miss




Gente local





Nas margens os pescadores lançavam as redes


Reparem no homem junto a um dos encontros da ponte a pescar;
o caudal do rio era impressionante.




Depois de mais uma tentativa, o sucesso.
Apesar do convite não desci a tentar a minha sorte.




Pormenores de uma ponte com história


Pela noite, depois de jantar um delicioso bife de gazela demorei-me a ver a tempestade que se abateu no local.
Com a Miss debaixo de um telheiro protegida da chuva torrencial pude apreciar assim o espectáculo único que é uma trovoada forte em África. A noite ficou clara, o vento quente tornou-se forte a a chuva continuou torrencial noite dentro.
De manhã, já sem chuva, fui até à povoação de Buba onde termina o asfalto. Depois de almoçar um belo peixe perguntei a um dos locais onde poderia passear naquela zona e ele indicou-me a Lagoa da Cufada, dizendo-me que era relativamente perto e que a estrada era boa, apesar de ser em terra batida (já conseguem adivinhar o desenvolvimento da história?!).

Já tenho a minha dose de experiência no que toca a seguir conselhos de pessoas locais e sei que as informações podem não ser as mais correctas (para dizer no mínimo). Dicas de distâncias, estado das estrada e trajectos até ao destino são sempre "pouco precisos" e por isso costumo filtrar o que me dizem, procurando perguntar a mais que uma pessoa e seguindo muito o meu instinto.
De facto a estrada não começou mal. O tempo que demoraria em chegar à lagoa é que foi logo "mal calculado".
- "Uma meia hora e estás lá", disse-me ele.
Ao fim dessa meia hora ainda nem tinha visto o desvio para a dita lagoa e a estrada tornava-se cada vez pior.
A certa altura passei por uma aldeia, perguntando se ia na direcção certa e pouco depois estava a ver a "bem dita" placa com o nome "LAGOA DA CUFADA";  apesar de passar quase imperceptível no meio da densa vegetação.
A picada até pode ser boa na época seca mas agora tudo cresce e não acredito haver muitos carros a passar ali durante estes meses.
Sem ver ninguém durante outra boa meia hora continuei com a Miss a rolar em primeira, arriscando várias vezes a queda, pois havia partes bastante escorregadias.
Além disso o calor era muito e a humidade insuportável ficando eu no dentro do meu pesado fato a suar como se tivesse num sauna.
Às tantas parei e pensei se deveria seguir caminho ou voltar para trás. Tudo aquilo só me fazia lembrar uma viagem que fiz certo dia no interior de Angola, acompanhado pelo Miguel Escaleira, onde passamos por troços onde a vegetação era mais alta do que nós em pé em cima das motas e nem o trilho que seguíamos conseguíamos ver; aquilo era parecido.
Mas ali estava sozinho, com a moto carregada, no meio da Guiné e sem ninguém saber que ali estava. Os animais, as minas, os possíveis bandidos, tudo isso era a menor das minhas preocupações naquela altura. Começava mesmo a ficar preocupado mas decidi continuar: aquilo tinha de ir dar a algum sítio, pensei.

Finalmente cheguei a uma aldeia (com 3 casas) e alguns locais disseram-se que o lago era um pouco mais à frente.
Continuei então e por fim lá estava ele. Encontrava-me em pleno Parque Natural das Lagoas da Cufada que abrange uma área de noventa mil hectares.
Pelo que me disseram vários "turistas" vêm aqui na época seca observar várias espécies de aves, como flamingos, pelicanos e tucanos. Existem também muitos hipopótamos, manatins e crocodilos. Felizmente não vi nenhum e depois de uma fotos rápidas montei na Miss e preparei-me para regressar.

O próximo desafio foi "dar a volta" com a Miss para regressar.
Pensem numa picada de lama, uns pneus lisos, os trilhos bem marcados no terreno e uma mota de quase 300 kg carregada com mais outros tantos.
Mesmo com a experiência acumulada de outras ocasiões aquele era um desafio.
Ao fim de algumas manobras lá consegui voltar a Miss para o rumo certo e quando subia para a mota cai e a minha perna ficou debaixo dela, tendo o meu pé prendido numa das malas laterais.
Foi a única vez na viagem que me aconteceu uma coisa semelhante e durante uns longo segundos pensei no que fazer. Obviamente deitado não tinha força para tirar a mota que esmagava a minha bota (boas botas aquelas) e tirei o capacete tentando acalmar-me e pensar como poderia sair daquela situação.
O certo é que me mantive muito calmo e tentei soltar a bota debaixo da mala, conseguindo.
Um dos fechos da bota partiu-se, no tornozelo ficou uma valente nódoa negra mas foi tudo.
Conduzir uma mota tem destas coisas, seja em África ou em qualquer outro sítio. Mas ali tinha dado jeito ter alguém por perto, admito. :)
Nada de grave, tudo se resolveu e segui até à aldeia próxima onde descansei e tive oportunidade de passar umas horas inesquecíveis na companhia de uma família local.

Mesmo com um português difícil, com muito crioulo à mistura, consegui manter uma interessante conversa com o mais velho, explicando-me ele o que fazia ali, de que vivia ele e a sua família e alguns pormenores interessantes do seu dia-a-dia.
A curiosidade era mútua e respondi-lhe a um extenso questionário acerca da Miss e da viagem que faço.

Despedi-me depois de alguns chás e depois de uma "foto de família" que irei para sempre recordar.


Em Buba almocei e pedi algumas dicas


Reparem no estado das estradas até ao lago
("a estrada está boa, chefe. Sem problemas.")


Primeiros quilómetros

Início do desvio para o lago


Dez minutos depois


Vinte minutos depois


Trinta minutos depois


Trinta e cinco minutos depois



Finalmente o lago. Sem crocodilos nem hipopótamos por perto
(digo eu)

Uma das três casas da "aldeia"


O tradicional chá



Vista da casa e o poço de água (de onde bebi bastante)









O "mais velho" fumando o seu cachimbo com tabaco

Vista de uma das casas



O dendê de onde se extrai o óleo de palma e a ferramenta (lança)
que se usa para tirar o fruto do dendezeiro


A foto da família
A regresso a Bissau foi feito com bastantes paragens, alguma conversa e muitas fotografias.
Melhor do que as descrições fiquem com as imagens que marcaram um dia cheio e muito interessante.




Pausa num arrozal para uma explicação sobre esta planta
e a maneira como é ali cultivada


Caçador de macacos e a sua presa mais recente




Que jeito dão os guarda-chuvas com aquele sol





Um grupo de pequenos pastores


Um pequeno pescador a vender o seu material


Pausa para atestar (com direito a filtro e tudo)


De volta a Bissau.
Assim não custa nada...

De volta a Bissau fui tomar a prometida cerveja com o João, o amigo portageiro. De esplanada em esplanada andámos pela parte antiga da cidade mas foi apenas quando decidimos  ir aos bairros, nos arredores, que a noite ganhou outra vida.
Ali, é o local  ideal para tomar-se o pulso a Bissau; é lá onde tudo acontece.
Durante toda a noite o movimento de pessoas não abranda e alguns restaurantes (o conceito africano de restaurante, claro, que se limita muitas vezes apenas a uma grelha a assar carne, algumas cadeiras e mesas em plástico espalhadas e, claro, uma aparelhagem a debitar som altíssimo) nem sequer fecham.
Os empregados vão dormindo deitados sobre as mesas mas sempre atentos aos pedidos que parecem não abrandar: "mais uma cristal", "mais 1000 de cabrito".
 
Ali, nos bairros, vive-se (tenta-se), como muito poucas condições, e é onde estão a quase totalidade dos guineenses, habitantes de Bissau, muito à semelhança do que se passa na maior parte das cidades por onde tenho passado.

À semelhança de Luanda, aqui o "bicho" que domina as estradas é o táxi-colectivo, chamado de "toca-toca".
De porta traseira sempre aberta (é por aí que entram os passageiros), estas Van, que chegam da Europa  directamente da sucata, aqui com muita solda e martelo ficam "impecáveis, como novas" e prontas para encher de pessoas, mercadorias, animais vivos, etc.
Lotação máxima: "até encher" (o que faz algum sentido :) ). Para quê complicar com leis?!
Os cobradores aqui viajam pendurados atrás, chamando assim os clientes.

Tive oportunidade de fazer uma pequena viagem dentro de um deles, na companhia do João e devo dizer que não é nada mau (ok, é barato pelo menos).
Aqui, pelos menos, os passageiros não têm de levar com o som no máximo de um kuduro ou algo do género como acontece em Luanda, Nairobi, etc., já que estes parecem ser "parentes pobres" dos candongueiros e dos matatus de outros países. Muitos deles, coitados, nem rádio têm...

Depois de conhecer a "segunda mulher do João", uma enfermeira que trabalha no hospital, despedi-me e desci de novo ao centro onde descansei.
O dia seguinte era de regresso ao Senegal e ainda que a estrada estivesse em condições queria sair cedo (o que representa antes das 10 da manhã).
O que aconteceu é que antes de me deitar consegui ainda ver os meus email e recebi um que iria mudar os meus planos para o dia seguinte e dar um colorido completamente diferente à minha passagem pela Guiné.

O Joel, um amigo viajante, enviou-me o contacto de uma organização humanitária e social, de nome Casa Emanuel, em Bissau. ( http://casaemanuelguineabissau.blogspot.com/ )

Pareceu-me muito interessante visitar e conhecer assim aquele projecto.
Criada em 1995, a associação engloba uma residência para crianças órfãs, abandonadas, com incapacidade física e/ou mental e HIV, uma escola e um liceu, um centro médico e um centro de recuperação nutricional.
Mais de cem crianças utilizam aquele espaço e o centro médico, com várias especialidades, serve igualmente a comunidade.
A instituição vive de apoios externos, voluntariado, muita vontade e dedicação de um grupo de pessoas que faz toda a diferença para aquelas crianças e para a restante comunidade local.
Além de Bissau estão a desenvolver outros projectos na Guiné,  uma país considerado como o 3º mais pobre em todo o mundo.

Naturalmente, as crianças são as que mais sofrem e, segundo dados da UNICEF, a taxa de mortalidade infantil é das mais elevadas em África, sendo que um quarto das crianças não sobrevive até aos 5 anos de idade.
Como em muitos outros países, o governo não presta qualquer apoio à sua população e são instituições como esta que tentam fazer a diferença junto da população, tornando a vida dos mais carenciados entre o povo, já de si pobre e necessitado, um pouco mais digna.

Na conversa que tive com a Irmã Eugénia, uma senhora muito interessante e empenhada naquele projecto, dizia-me menos mal se o governo guineense deixar estar as coisas, pelo menos não dificultando a ajuda desta associação.
Em África vê-se muita coisa incompreensível aos nossos olhos e aqui neste país, sem dúvida um dos países do mundo com mais recursos naturais, a vida da população continua num estado lastimável, grande parte sem qualquer acesso ao que aí no ocidente consideramos fundamental para viver.

Fiquei muito impressionado com as instalações, a organização e a qualidade dos materiais que servem os meninos.
Os miúdos, claro, adoraram a mota, correndo para mim (pensando que fosse o "Ti Joel", que costuma todos os anos vir até aqui de mota, acompanhado pelo "Ti Miranda") assim que entrei pelo portão.
Acreditem que já estive em muitos sítios em África com crianças, alguns projectos deste tipo, todos muito bonitos, mas este deixou-me uma impressão muito forte.
As crianças acompanharam-me na visita às suas instalações, mostrando-me a escola, ginásio, os quartos, brinquedos, até mesmo a crianças mais pequenas que dormiam nos berços.
Enquanto um dos meninos ia com minha pequena câmara de filmar, a explicar muito sério o que estava a registar, um bando de outros seguia-nos para todo o lado.

É um lugar muito feliz, positivo e bastante organizado onde todos sabem o que podem e não podem fazer. Não deve ser fácil tomar conta de cento e tantas crianças, desde os bebés até aos adolescentes.

E lá fomos assim, sempre com mãos dadas e muitos abraços à mistura (que crianças tão doces e mimosas, aquelas) passando a manhã a passear e a mostrarem cheios de orgulhosos a "Casa", os seus quartos e brinquedos (oferecidos generosamente pelos padrinhos no estrangeiro).



Os "putos" a pousarem na pintura que consideram
ser a mais bonita



As salas das diferentes classes






Uma aula no ginásio




A cor da pintura nas paredes reflecte a alegria deste sítio



As instalações




A associação recebe vários meninos em diferentes situações.
Sente-se uma alegria especial em cada uma das crianças.
 


O Elias, muito orgulhoso, a querer mostrar todos
os presentes enviados pelo seu "padrinho"


A excitação na hora de mostrar os brinquedos preferidos


Pormenor de uma das mesas de estudo no quarto
de uma das crianças


Os mais pequenos abraçavam-se às minhas pernas...:)



Alguns dos apoios estrangeiros


A clínica médica impressionou-me pela sua dimensão
e diferentes especialidades


Algumas ONG´s e instituições públicas apoiam este projecto e uma delas tem o nome de "Coração na Guiné" ( http://www.facebook.com/coracaonaguine ).
Além de apoiarem muito esta Casa, em especial, têm dado uma forte contribuição na melhoria de vida de muitos guineenses, trazendo equipamento médico para o hospital, material para bibliotecas, reconstruíndo escolas, apoiando instituições, etc.
São um grupo de pessoas empenhadas e dedicadas, de onde apenas conheço o Joel e terei todo o gosto de conhecer pessoalmente quando chegar a Portugal.
É difícil esquecer o sorriso das crianças e dos mais desfavorecidos.

Melhor do que ser eu a mostrar a Casa, este bonito e feliz projecto, é alguém de dentro fazê-lo.
Os vídeos tenho pena de não os conseguir mostrar aqui, mas fiquem com as fotos tiradas por um pequeno: os seus amigos e o que ele considera importante mostrar daquela que é a sua casa (imaginem a felicidade de um puto com uns 6/7 anos a tirar fotografias à vontade com "uma máquina grande, com muitos botões e onde pode ver a imagem no visor").






















Fotos tiradas por um menino na Casa Emanuel, em Bissau

(*) Este post é dedicado às pessoas que dão a sua ajuda e dedicação
para ajudar os outros, sem puder ter o privilégio
que é ver ao vivo o fruto desse trabalho.