domingo, 27 de março de 2011

Oeste da Tanzânia (rumo a Sul)


Kigoma continua a ser um dos portos fluviais mais importantes e movimentados do Lago Tanganica (Tanganyika em suaíli).
No passado, esta cidade  fazia a ligação do "temido e desconhecido" interior Africano com a costa do Índico e, deste modo, com o mundo ocidental.

Juntamente com Ujiji, a mais antiga cidade do Oeste da Tanzânia, 10km a Sul, Kigoma está intimamente ligada à "descoberta" do interior daquela região de África pelo Ocidente. Richard Burton, John Speke e mais tarde Dr. Livingstone e Henry Stanley foram grandes exploradores da altura e os primeiros ocidentais a pisar aquela remota e inacessível região.
Richard Burton e John Speke foram os primeiros europeus a explorar a região, o que levou à "descoberta" do Lago Tanganica em 1858 e pouco depois do Lago Victória, a Norte.
Também em Ujiji aconteceu o famoso encontro, em Outubro de 1871, entre Dr. Livingstone e Stanley, depois do jornalista ter andado vários meses à procura do médico desaparecido durante vários anos naquela região.
A celebre pergunta: "Dr. Livingstone, I presume?" imortalizou para sempre o momento e fez sonhar milhões de europeus e americanos com África e as aventuras passadas neste continente.

Visitei o espaço na pequena povoação de Ujiji conhecido por "Dr. Livingstone Memorial" que consiste "apenas" num pequeno museu muito pobre em informação e numa placa assinalando o local do encontro do americano com o britânico.
Bastante mais interessante e educativo foi o livro que li (oferecido pelo amigo João Coelho) acerca da busca da fonte do Rio Nilo incluindo a odisseia que foi a procura de Stanley pelo lendário explorador Dr. Livingstone e todas as peripécias.

Ler livros históricos estando nos locais onde a acção se desenrola é sempre muito mais interessante e enriquecedor do que fazê-lo em casa.




Local do lendário encontro de Stanley com o Dr. Livingstone em Ujiji


Foi debaixo de uma destas árvores que o encontro teve lugar


"Dr. Livingstone, I presume?", museu em Ujiji


Existem três formas de percorrer o Oeste da Tanzânia: voando, conduzindo pela tortuosa estrada de mais de 600 kms até Mbeya e embarcando numa viagem de barco através do Lago Tanganica, numa odisseia de 3 dias até Kananga, no Sul do país (ou se se preferir, mais uns quilómetros, até à Zâmbia).

O Mv Liemba, antigamente conhecido por Graf von Götzen, é o ferry que faz esta viagem.
O navio foi construído em 1913 na Alemanha, tendo sido um dos três a operar no Lago ao serviço da Alemanha durante a Primeira Grande Guerra.
Com esta frota os alemães detinham a supremacia completa do Lago, através do qual lançavam ataques às forças Aliadas.
Assim, foi essencial aos Aliados concentrarem esforços para conquistar a região, primeiro através da captura de um dos barcos alemães e depois, já com apoio naval, tomando a cidade de Kigoma por terra, obrigando à retirada dos invasores.

Durante a fuga, em 1916, os alemães afundaram o Graf von Götzen e só 8 anos depois uma equipa da marinha naval britânica o resgatou das águas, recuperando-o e colocando-o ao serviço, como transporte de pessoas e carga, em 1927, já com o título de Mv Liemba.   

Actualmente o navio pertence aos Caminhos-de-Ferro da Tanzânia faz a viagem entre os portos de Kigoma, na Tanzânia e Mpulungu na Zâmbia, com várias paragens ao longo do caminho.

O Mv Liemba parte de Kigoma às quartas-feiras e com alguma sorte cheguei à cidade no início da semana.

Entretanto os problemas com a Miss Africa começaram a aparecer em Kigoma e a embraiagem teimava em não funcionar correctamente fazendo a mota "patinar" diversas vezes, não me deixando aumentar muito a velocidade.
Ainda assim, enquanto esperava pelo dia da partida no Liemba, dei umas voltas pela cidade e arredores. Qualquer saída para as aldeias vizinhas davam-me grande satisfação: estradas de terra vermelha, vegetação  densa (a época de chuva apesar de trazer momentos desagradáveis traz também o especial aroma da terra molhada e a intensidade nas cores das paisagens verdes) e aldeias, muitas aldeias e simpáticos habitantes locais.




Aldeia local nos arredores de Kigoma a comemorar a vitória do Benfica por 2-0 com o Sporting depois de conhecer um "lagartinho" perdido no mato


O dia da partida chegou e quando estacionei na doca do porto de Kigoma já centenas de pessoas esperavam a hora do embarque. A mercadoria ia sendo pesada e transportada para o convés do Liemba por dezenas de carregadores.
Caixas de papelão, cestas com ananázes, bananas e peixe seco, garrafões de óleo vegetal e gasóleo, colchões, grades de cerveja, etc. tudo ia sendo colocado no interior do barco.
No meio de tanta confusão, eu e a Miss Africa esperávamos ansiosos e preocupados. 
Como ia eu colocar a pesadona Miss no barco, já que a única ponte de acesso não tinha largura suficiente e o Liemba estava a alguma distância da doca?!

Apesar da minha preocupação o staff parecia tranquilo, demasiado relaxado para o meu gosto.

-"No problem, No problem!", diziam.

Entretanto o tempo ia passando e o espaço disponível no convés no barco ia desaparecendo.
Poucas horas depois já não havia qualquer buraquinho para colocar a Miss e continuavam a chegar caixas e caixotes e cestas de fruta. Milhares daqueles frutos eram pacientemente arrumados pelos rapazes, enquanto a minha paciência diminuía.

-"No problem", continuavam a dizer.
 
Percebendo que estava ansioso,  mostraram-me com algum orgulho a grua fixa do barco e tentaram explicar como facilmente iriam colocar a mota bem na frente do Liemba, no piso elevado, junto da proa. Tudo seria fácil, rápido e sem qualquer problema.
Claro está que tal era impossivel: o piso era inclinado, havia cabos de aço esticados por todo o lado sendo muito difíceis de evitar, a mota ficaria junto do corrimão correndo o sério risco de acabar por cair e ir parar no fundo do segundo lago mais profundo do Mundo.

Depois de passar alguns anos a trabalhar em África, conheço o significado da expressão "No Problem" e o que representa, dita repetidas vezes e com pouca confiança: sabia que tinha ali um problema para resolver.

Então, chamei o capitão do navio e juntos começamos finalmente a fazer as coisas acontecer: mandou-se afastar duas enormes cestas de bananas do meio do convés no piso inferior, procuraram umas cintas fortes para içar a mota, tirei as malas laterais e... a Miss An voou.

Bem no centro da confusão, no ponto mais movimentado do Liemba, no meio de toda a mercadoria ficou a mota e foi ali que se viria a manter nos dias que se seguiram.


Mv Liemba, um barco especial







A espera da Miss An e do dono em momentos ansiosos e preocupantes antes de embarcar no Liemba



E Voou mesmo...
(imaginem a minha cara de pânico pronto para saltar para debaixo da mota se alguma coisa corresse mal)



Arrumada bem no centro da confusão do Liemba


Passar alguns dias a bordo do Liemba, parando nas aldeias ao longo do Lago, muitas inacessíveis através de terra, é uma experiência, no mínimo, interessante.
O que acontece é que essas aldeias não têm doca e o barco limita-se a parar, sem aproximar-se da costa, por algumas horas, e sem se desviar da sua rota.
Mas se o Liemba não vai até às aldeias, as aldeias vêm até ao Liemba: dezenas de barcos, uns pequenos e outros mais pequenos ainda saem das povoações em direcção ao navio. Vêm buscar pessoas, trazer pessoas, vender mercadorias e carregar mercadorias, tornando aquele momento num agitado e divertido cenário levando a que todos no barco o queiram apreciar.
 
Sempre que o barco parava íamos assim todos, os poucos mzungos que ali viajam e todos os outros que nada melhor tinham para fazer, em direcção ao corrimão onde apertados víamos quem chegava, quem partia, o que traziam e o que levavam.

(Naqueles momentos lembrava-me das histórias que os meus pais contavam da chegada ao aeroporto de São Tomé, no tempo colonial, de pessoas vindas de fora e como os habitantes da ilha iam ver os recém-chegados, por mera curiosidade (e por pouco mais terem para fazer)).

Quando o navio parava durante a noite perto de uma aldeia, dezenas de embarcações aproximavam-se, a maioria pequenas canoas, e trocavam mercadoria. Muitos deixavam madeira e  levavam ananaz e banana. A confusão era sempre muita; do barco assistimos a uma das canoas a afundar, tal era o peso da madeira que trazia e a aflição do dono a nadar para salvar parte da mercadoria.
No Liemba todos achavam imensa graça à aflição do senhor, no meio do lago, sem qualquer luz que o ajudasse, em busca das estacas de madeira. No final tudo correu bem.

Durante o dia o espectáculo era ainda mais intenso: vários eram os barcos a motor, carregados de locais, mulheres, crianças, bébés, idosos a tentar acostar ao barco o mais depressa possível e primeiro que todos os outros (o que não se entendia pois o Liemba ficava sempre muito tempo em cada local). Por vezes os choques entre as embarcações eram inevitáveis e entre gritos e ameaças todos acabavam por subir ou descer. No final tudo se resolvia.
 
Ao contrário da maioria das pessoas que dormia no chão e onde podia (o assento da Miss An com o seu forro especial de pele de ovelha importada dos USA estava a ser disputado pois era um lugar privilegiado para descansar) uma pequena quantidade de pessoas, onde estavam incluídos todos os estrangeiros, dormiam num confortável quarto (do tamanho da dispensa da cozinha dos meus pais- é pequena ,acreditem) onde mal cabia a cama com beliche.
Pouco tempo se passava no interior do quarto e portanto ninguém se podia queixar. Só a ida à única casa-de-banho daquele piso era sempre de evitar mas como opção restava descer à única casa-de-banho do piso inferior (vou deixar à vossa imaginação o estado daquela instalação, usada por centenas de pessoas durante 3 dias num barco com quase 100 anos) ou arriscar  uma perigosa manobra de "mijinha fora-de-bordo" (também não recomendável pois se descoberta poderia pôr em risco a permanência dentro do barco).
 
Durante a noite fui umas quantas vezes até lá baixo (não à WC) apreciar como dois locais dormiam sobre a mota e acordaram espantados ao ver-me chegar.

- "No Problem" disse agora eu, sem me importar, sabendo que outra coisa não posso mesmo fazer.

Durante a hora das refeições as poucas dezenas de pessoas que estavam no piso superior, na parte previligiada do navio, dirigiam-se para o restaurante onde comiam, uma básica refeição local, sem grande luxo, pois claro.

Três dias e duas noites foi o tempo que passei até Kasanga, a última paragem ainda na Tanzânia, antes do Mv Liemba seguir até a Zámbia.
Ao longo do trajecto podemos contemplar em todos os momentos as montanhas na RDC e as montanhas do lado da Tanzânia, bastante mais perto. As paragens mais memoráveis foram em Lagosa, onde as montanhas do Parque Nacional Mahale fazem parte do magnífico cenário, em Karema e em Kipili.










Algumas imagens tiradas no interior do Liemba



Final do primeiro dia



Durante uma das  paragens durante a noite
(reparem num  habitante local a tirar a água de dentro da canoa antes que ela afundasse)













Quando o Liemba parava o espectáculo começava


A pouca distância do meu destino final, Kasanga, pensava em como seria a doca (ou sequer se existia alguma) e em como iria colocar a Miss An numa dessas pequenas canoas para chegar até terra.
Preocupação a mais: ao aproximar-me do meu destino vi que existia uma doca onde o Liemba encostou e foi possível facilmente tirar a Miss para terra.

Despedimo-nos do Mv Liemba e começamos a montar as malas, a organizar a bagagem e vesti o fato. Não antes de dar um valente mergulho no delicioso lago Tanganica com suas quentes e claras águas.


Já em terra, depois de desembarcar do Liemba


Despedimo-nos do Mv Liemba até um dia


A "arrumar a casa" para rumar para Mbeya, pensava eu...


Os mais de trezentos quilómetros que se seguiram entram directamente no TOP 5 das piores estradas por onde passei ao longo desta viagem.
Depois de longas horas por caminhos sempre em terra batida (uma mais batida que outra, sempre cheia de buracos e lama) e já a cinquenta quilómetros da localidade de Tunduma, uma pequena vila na fronteira com a Zâmbia, o quadro da Miss An, uma vez mais, cedeu tendo desta vez partido por completo.
 
Os momentos que se seguiram foram dos mais cansativos e preocupantes que tive na viagem.
Vou tentar descrever o cenário: o quadro da mota estava partido numa estrada muito pouco movimentada; eu estava carregado como sempre ando, com a mala de alumínio a bater no veio de transmissão (a traseira da mota com o peso arreou visto já não ter a estrutura do quadro a suportar o peso), com sério risco de danificar o amortecedor traseiro, com o GPS sem funcionar, correndo o risco de "apanhar uma chuvada " (trovejava e já tinha apanhado alguma chuva ao longo do caminho), sem grande iluminação na mota (o farol  principal não funciona há algum tempo, o spot de nevoeiro está avariado e o de xénon a fazer mau contacto). 

Entretanto, depois de amarrar por várias vezes a mala de alumínio na parte de trás da mota, tendo caído sempre em andamento, já a levava abraçado.
Claro que como imaginam, estando eu a conduzir abraçado a uma enorme mala de 40lts, numa estrada de terra batida cheia de buracos, sem muita iluminação, cansado e a chover, com o quadro partido e o amortecedor em vias de se despedaçar, sem GPS e com a moral em baixo, mal alimentado e sem um duche há 3 dias, a disposição não estava das melhores.  Depois de eu e a mala e a mota e toda a bagagem cair não ficou melhor...

Nem melhorou quando cheguei a Tunduma, uma povoação triste (a condizer com o meu estado de espírito na altura), onde o melhor quarto que consegui foi num hótel barulhento e caro e sem água...

T.I.F.A.
 
Tomei o meu "banho de caneca" e dormi.



Mais de 300 quilómetros desta estrada (aqui até estava tudo bem) até Tunduma



Mas não há milagres e o quadro acabou por partir...


No dia seguinte durante a manhã fui à procura de um "soldador" que me pudesse dar uma ajuda com o quadro para seguir viagem.
Depois de umas horas tinha a minha mota pronta para arrancar para o Malawi. Em África dá-se sempre um jeito e a verdade é que, apesar de o trabalho de soldadura ser imperfeito e improvisado numa "oficina" de beira de estrada, foi o suficiente para seguir viagem (e aquela soldadura "mal-amanhada" chegou a Moçambique onde tive de a desfazer com serra de corte e fazer o trabalho correcto).

Quando as coisas correm mal, geralmente correm mesmo mal e também a embraiagem  dava mais problemas, obrigando-me a não poder rodar muito o punho do acelerador.
Para atingir os 40km/h tinha de fazer primeiro a rotação do motor chegar muito alta para depois a fazer baixar e manter, assim, alguma velocidade. 
Passei assim em aldeias a 40km/h (velocidade comum às bicicletas locais), todo equipado, cheio de bagagem, a fazer um barulho imenso dadas as elevadas rotações... momentos caricatos.

 A 30km/h entrei no Malawi (não consegui manter a média dos 40 porque havia muita subida) e assim continuei durante meio milhar de quilómetros o que, vendo as coisas pelo lado positivo, me fez olhar para a maravilhosa paisagem com outros olhos, de uma forma mais atenta para melhor poder apreciar a beleza  daquele país. :)