domingo, 29 de maio de 2011

De volta a Angola (passando pela Namíbia)

Estava uma vez mais na Namíbia, um país que tantas saudades me tinha deixado. Poucos foram os países em que tive tanto prazer de cruzar e percorrer as suas rectas a perder de vista como este.

Saindo do Botswana e entrando na Namíbia, em plena região do Kalahari, a paisagem pouco ou nada se altera.
Vistas bem as coisas a divisão deste países, como muitos outros neste continente, foi feita a régua e esquadro por europeus, sem qualquer respeito pelas consequências causadas. E ao aproximar-me da Namíbia percorri paralelamente essa "linha" recta durante dezenas de quilómetros até entrar finalmente neste país.


Uma vez mais: Namíbia


Trans-Kalahari Highway até Windhoek


Em direcção a Windhoek, numa das rectas de muitos quilómetros, apanhei uma das maiores chuvadas que tenho memória.
Nada havia para nos abrigar, a mim e ao Jami e a certo momento, completamente encharcados, encostados na berma da estrada, nada mais pudemos fazer do que esperar até a chuva deixar de cair.

No final da tarde chegámos a uma pequena cidade, a pouco mais de duzentos quilómetros da capital, onde resolvemos acampar.
O mesmo ritual das outras noites manteve-se: tendas montadas, banho quente tomado e uma boa garrafa de vinho tinto (uma para cada um) para acabar o dia.

No final da manhã seguinte chegámos a Windhoek onde nos alojámos num backpaker conhecido.
Os restantes dias foram passados a passear pela cidade aproveitando os seus bons restaurantes e esplanadas.

O combinado com o Jami, o finlandês que tinha partido do seu pais na sua Yamaha Teneré, 6 meses atrás e que terminaria a sua viagem na Cidade-do-Cabo, era que tentaríamos fazer juntos a costa Oeste da Namíbia até à fronteira com Angola, descendo depois o Jami para Sul e rumando eu para Angola.
A ideia, pelo menos,  era essa. Porém chegados a Windhoek falámos com algumas pessoas vindo dessa região, que nos informaram que o estado das estradas, todas elas de gravilha, era péssimo. A época de chuva torrencial transformava algumas dessas estradas em autênticos rios e a passagem de cursos de água em alguns dos troços impedia qualquer progressão.

A decisão estava tomada. Já tinha tido alguns problemas mecânicos na Miss e sinceramente estava cansado de rebocar a mota. Queria descanso, queria facilidade e alcatrão. Queria chegar a Angola, país que me é familiar, falar português, descansar e acabar a primeira parte da viagem.

Despedi-me do finlandês e fiz-me à estrada. Optei pelo percurso que tinha seguido em direcção contrária, quase 8 meses antes, quando desci de Angola. Setecentos e cinquenta quilómetros até à fronteira de Santa Clara, em estrada asfaltada, era o que tinha pela frente. Viajava de novo sozinho e sentia-me muito bem.

Apenas o facto de ter o dinheiro contado para chegar a Luanda me limitava. O cartão Visa não funcionava desde há algum tempo e tinha pouco dinheiro, apenas o suficiente para, se tudo corresse bem, chegar ao meu destino.
A verdade é que uma vez mais cometi um erro, a que posso juntar à lista dos cometidos ao longo dos últimos meses, e que era não ter qualquer reserva de dinheiro comigo.
 
E assim, depois de uma boa centena de quilómetros, com pneus novos comprados em Windhoek e com a Miss Africa a rolar suavemente, tive um encontro que acabaria por mudar a forma (e o final) da viagem até Luanda.



Brinquedo artesanal made in Namíbia


O Olivier é um francês que tem trabalhado nos últimos anos na ilha de Santa Helena, uma pequena colónia britânica no meio do Oceano Atlântico.

Quando o conheci, a caminho da fronteira com Angola, estava parado na beira da estrada a colocar óleo no motor da sua velhinha Honda Transalp.
Tenciona chegar a França naquela mota, o que com a fuga crónica de óleo que tem no motor, será um arriscado feito e uma grande aventura.

Encontrar alguém na estrada a viajar rumo à Europa é coisa rara nesta costa de África. Deste modo, juntei-me ao Olivier e à sua "rat-bike", e mesmo gostando de viajar sozinho e ao meu ritmo, decidi acompanhar aquele francês até Angola.

Contudo, a diferença dos ritmos de condução era abismal. Em rectas de alcatrão costumo rodar o punho até aos 140km/h e manter-me por lá.
Porém, o Olivier e sua Honda com motor cansado não passa dos 100.
Ao final de umas horas de condução na sua companhia sentia-me cansado e aborrecido com aquele tipo de condução. Além do mais tinha planos de chegar à fronteira e entrar em Angola naquele dia.
Acompanhando o Olivier durante a tarde não foi possível cumprir o que tinha planeado inicialmente e, mesmo tendo puxado a Transalp bastante nos últimos quilómetros, chegámos tarde à fronteira.
 
Nada mais havia a fazer naquele dia: não tínhamos conseguido passar para Angola e ficámos a dormir numa (espelunca) residencial em Santa Clara.

Angola estava mesmo ali e apesar de ainda estar em território namibiano, a sua (má) influência já se fazia sentir : preços exorbitantes e confusão.
 
Sessenta dólares por um quarto sem casa-de-banho, sujo e cheio de mosquitos, vinte dólares por um prato de funge e frango e uns tantos por uma cerveja: gastei mais naquela noite do que me lembro gastar numa semana em alguns dos países que atravessei.

 
No dia seguinte, bem cedo estávamos a entrar finalmente em Angola; e que difícil foi.
Apesar de termos os vistos em ordem, exigiram-nos, a mim a ao Olivier, a cópia da carta de chamada, bem como o extracto das nossas contas bancárias.
Claro que não estávamos preparados para mostrar esses documentos (não deveria isso ter sido dito quando me entregaram o visto na Zâmbia?!) e apesar de explicarmos que para obtermos os visto previamente já apresentáramos todos esses documentos, os oficiais continuavam insistiam.

Em relação ao extracto bancário expliquei vezes sem conta que não seria possível pois o cartão Visa não emite extractos (mesmo que estivesse a funcionar, o que no meu caso não estava).
Quanto à carta de chamada tinha a sorte de ter guardado cópia no meu computador, "apenas" sendo necessário imprimi-la.
Depois de alguma conversa convenci os oficiais a tentarem imprimir o ficheiro que trazia na minha Pen-drive. Apenas faltava encontrar um computador que tivesse o programa para abrir aquele PDF (e explicar ao chefe de serviço o que era um ficheiro com este formato e que precisava de um computador com um determinado programa- Acrobat Reader, para conseguir?!!!!!!!!!)
 
Bem, conseguem imaginar que a minha paciência estava a chegar ao fim. Tinha gasto tempo e dinheiro para obter o exigente visto para Angola na Zâmbia, passado a noite na fronteira porque os funcionários da migração saíram mais cedo dos seus postos de trabalho e agora continuavam a exigir-me documentos e mais documentos.
 


Olivier a mudar a roda da sua "rat-bike"


Aviso no  "hótel espelunca" onde passámos a noite junto a Santa-Clara:
"Está proibido o uso dos quarto com as companheira dos uso comercial dos seus corpos".


Mais nada: Bem-vindos a Angola!!!


Sessenta dólares de quarto. Lembro-me de pagar o mesmo valor por cinco dias no hotel sobre o Lago Malawi...


Várias horas na fronteira e finalmente tudo estava em ordem. Entrámos no país e o estado das estradas, conforme esperado, agravou-se. Buracos e mais buracos, estradas de terra (mal) batida, camiões desgovernados, muita poeira e lama foi o que apanhamos até ao final do dia.


Aqui a terra-batida começava.
Tinha de diminuir a pressão do ar nos meus pneus.








Buracos, chuva e lama foi uma constante nas estradas pelo sul de Angola


Viajar na época das chuvas não é boa ideia em África, mas tenho poucas alternativas. A chuva começou e agora será assim até casa, primeiro nesta região (Angola e Congos) e depois mais tarde, a Norte.

No final da tarde e com a chuva a cair resolvemos parar e dormir.
Fora das principais cidade angolanas é tarefa quase impossível arranjar uma pensão, algum sítio onde ficar. Sem restaurante,sem hotel, a chover e numa pequena vila ainda longe do Lubango, nosso próximo destino, montámos tenda debaixo de uma "casa".

Noutros tempos talvez ali tenha existido uma residência importante, ou um espaço comercial de relevância na cidade. Agora, abandonada, apenas uma família, dormindo ao relento protegida da chuva pela cobertura avançada, e algumas galinhas, partilhavam aquele espaço com os dois viajantes.



Acampados de qualquer maneira numa vila a cem quilómetros do Lubango, partilhando o espaço com locais, protegidos da chuva


No dia seguinte rumámos para Norte, passando no Lubango ao início da tarde e continuando no ritmo lento possível.

Nessa altura aconteceu algo que mudou toda a história da viagem até Luanda: eu inicialmente estava decidido a ir por Benguela e chegando ao desvio esperei que o Olivier chegasse.
Tínhamos naquele momento a opção de seguir pela estrada que eu tinha previamente planeado ou como alternativa continuar na estrada que segue até ao Huambo, trezentos quilómetros mais à frente.

Nunca tinha feito qualquer uma destas estradas e não sabia quais eram as suas condições.
 
O que aconteceu foi que o Olivier apontou para longe, para as montanhas por onde segue a estrada para Benguela e comentou que havia muitas nuvens com chuva.
Decidimos então seguir pela estrada para o Huambo.

Poucos quilómetros depois, numa altura em que eu ia bastante mais há frente, o Olivier teve um acidente. Dois rapazes com uma pequena mota chinesa saíram da sua faixa, numa estrada perfeita de asfalto, e embateram na mota do francês.
Quando cheguei ao local, voltando para trás, depois de uma meia-hora de espera, vi os dois rapazes no chão inconscientes e o Olivier a levantar a mota.
Alguns locais já estavam perto das motas e diziam que aqueles rapazes tinham estado a beber e a fumar liamba.
Como acontece nesta região em muitos destes casos alguns diziam que iam morrer, que não iam conseguir recuperar,etc.
 
Todos concordavam que o Olivier não tinha culpa nenhuma pelo que aconselhei a irmos embora o mais rápido possível. Com a mala partida, o guiador empenado e alguns arranhões o francês segui-me e parámos uns cinquenta quilómetros mais à frente, uma vez que nessa altura já chovia bastante e estava a ficar escuro.

Estávamos numa pequena vila a uns duzentos quilómetros do Huambo. O susto de umas horas atrás já tinha passado e o melhor remédio era tentar esquecer e arranjar mais tarde a mota  em Luanda.

Se a noite anterior tinha sido mal dormida essa ainda foi pior. A chover torrencialmente o único local que encontrámos para descansar foi uma pensão.
Imaginem uma pensão, isto é o que foi uma pensão no tempo colonial, trinta anos atrás. As pessoas que agora gerem a única pensão na cidade conseguiram não mexer em nada desde aquele tempo: o telhado está a cair, chove dentro de casa, a cozinha...bem a cozinha deixou de o ser há muito, na única casa-de-banho para a meia-dúzia de quartos não corre água e, claro está, não há luz em toda a casa.
Os quartos são pequenos com mobília e roupa-de-cama de "boa qualidade" chinesa e a substituir os vidros partidos estão... tijolos.
 
E todo este luxo por apenas 40 USD a noite... Aí está Angola no seu pior.

Para melhorar a noite o conselho da "gerente" da pensão em tirar tudo o que tínhamos na mota, isto é, toda a bagagem que fosse possível ser roubada, pois nas imediações "há bandido".







Pensão Central: Angola no seu pior

Ainda de madrugada acordámos e resolvi despedir-me do meu amigo francês, pelo menos até Luanda. Os ritmos diferentes de condução não me faziam apreciar a condução e decidi continuar sozinho.

Antes de partir pedi conselhos a um senhor da vila sobre o estado das estradas até ao Huambo tendo ele dito que, seguindo eu por aquele caminho, apanharia apenas umas poucas dezenas de quilómetros de estrada com buracos, mas que depois "a estrada estava boa".
 
Uma das sábias regras de viajar é não acreditar em nada do que nos vão dizendo sobre as condições das estradas, especialmente habitantes locais.
Eu quis acreditar e sob uma chuvada (logo de manhã para começar o dia) fui percorrendo uma estrada de lama, quilómetro após quilómetro. Buracos, cursos de água, lombas, lama, de tudo um pouco aquela estrada tinha.
Porém ainda (queria) acreditava no conselho e achava que a qualquer momento o alcatrão iria surgir.

Mas em vez do alcatrão foras as quedas que apareceram e o cansaço começou a instalar-se.
Deviam ser umas dez da manhã e eu já tinha muitas horas de condução, sob chuva e pela lama.
Ao longe a estrada passava por um charco lamacento e havia rastos de carros até ele. O que eu não vi foi um desvio, uns cem metros antes do charco, que funcionava como passagem para as motas da aldeia próxima, e resolvi entrei sem pensar naquele "lago".
 
Pouco depois, ainda em cima da mota, tinha água até à cintura. Estava coberto e tombei a mota naquele lamaçal. Não havia ninguém por perto e gritei de fúria.
 
Que estúpido tinha eu sido. E agora?! A Miss estava mergulhada na água e coberta de lama.
Consegui naquele momento tirar o meu saco estanque e uma corda para reboque que tinha no seu interior. Depois prendi a corda na forquilha da mota e com ajuda de uma carrinha que tinha entretanto aparecido retirei a Miss.
 
Nada mais podia fazer. Estava cansado, completamente encharcado, a mota tinha sido mergulhada naquela água suja, tudo era lama.
Comecei por tirar as velas da mota e vi que o caso era sério: tudo tinha água, tudo estava cheio de água lamacenta.

Pensei em colocar  a Miss em cima de um carro e seguir até ao Huambo. O facto de ter muito pouco dinheiro, apenas o suficiente para a gasolina para chegar a Luanda também me preocupava.

Com alguma sorte apareceu uma carrinha, cheia de pessoas à boleia, sacos de fuba e cabras. Negociei o preço até ao Huambo e segui naquela picada sofrida. Foram mais de sete horas de picada lamacenta e por várias vezes a carrinha atolou e fomos nós, passageiros que a empurramos para, com a ajuda de ramos e folhas, sair dali.
Já de noite chegámos ao Huambo, depois de longas horas, sentado sobre a Miss An (que estava deitada sob os sacos de fuba) para esta não saltar nos buracos.
 
Não consigo descrever o cansaço e frustração que sentia naquele momento. Não comia nada há mais de 24 horas, não tinha bebido nada o dia inteiro, estava sujo, cansado e sem dinheiro. É verdade, não tinha 1 kwanza no bolso.

Tinha de chegar a Luanda para pedir algum dinheiro emprestado, ter o meu cartão VISA e organizar o transporte da Miss até à capital.

Falei com alguns polícias e expliquei a situação. Não tinha ninguém conhecido no Huambo, queria chegar a Luanda o mais rápido possível e precisava de um local seguro para deixar a mota até a puder  ir buscar.

Acabei por dormir nessa noite na esquadra, literalmente no meio da sala da esquadra da polícia do Huambo. Muito agradeço a esta esquadra que me ajudou, mesmo sem terem quaisquer condições para trabalhar (basta dizer que essa esquadra fica numa dessas casas coloniais ocupadas sem condições, sem luz nem água, com uma sala que serve para tudo, incluindo dormidas).
Ainda de madrugada o carro patrulha levou-me até à paragem de táxi onde apanhei o "candongueiro" para Luanda.
 
A Miss ficou dentro do posto policial e só passado algumas semanas a consegui vir buscar.




Dia do acidente, pouco antes de "me afundar no charco"


Cheguei a Luanda de "táxi" no meio do dia,  depois de mais de 500 quilómetros e uma mão cheia de paragens para pagar subornos à polícia de trânsito angolana que usa os táxis e todas as viaturas que circulam como meio para obter um salário gordo no final do mês.

Corrupção à parte, estava finalmente em Luanda ainda que sem a Miss e a precisar de me organizar: arranjar o cartão Visa, ir buscar a Miss Africa, pô-la a trabalhar, tirar os vistos para alguns dos países que irei atravessar e...descansar.

Acabara a primeira parte da viagem. Estava de regresso a Luanda, já com 32.000 quilómetros percorridos por África em quase oito meses.
Tenho muitas saudades de casa, da minha família e amigos e tenho de recuperar forças para a segunda etapa até Portugal.

Agora será sempre a subir e os desafios serão maiores. Contudo a ideia de chegar de mota a Portugal, estar finalmente em casa junto da minha família faz com que as forças apareçam e os obstáculos sejam vistos como ultrapassáveis.

Preciso então de um intervalo. Assim, este é o fim da Primeira-Parte.



Entretanto em Luanda:




Chegada da Miss a Luanda, mais de duas semanas depois do acidente e reparação em curso


segunda-feira, 16 de maio de 2011

Botswana (Jodido pero contento)



O Zambeze separa a Zâmbia do Botswana e assim atravessámos de ferry este rio, dirigindo-nos de seguida à imigração para formalizar a entrada neste país.

O Jami tinha o documento CARNET (que garante ao país no qual está a entrar que a sua mota não será vendida ali) e assim tratou de tudo rapidamente. Quando chegou a minha vez foi-me pedido o mesmo documento e, uma vez que não o tenho (até agora nesta viagem nunca me foi exigido Carnet), fui obrigado a fazer a importação temporária da mota.
Enquanto estava num escritório a "lutar" para não ter de pagar o valor pedido (aproximadamente 100 USD) o Jami discutia com o oficial da alfândega, argumentando que o seguro que tinha comprado no Quénia abrangia um conjunto de países entre os quais o Botswana, recusando assim pagar um novo seguro.

Depois de ter demorado uma meia-hora a tratar da minha papelada sai e vi que o Jami gritava dentro da sala de alfândega:

- "Não é justo, não pago nada!!!"

Mesmo falando com o chefe de serviço nada se alterou, como é natural, e acabou por sair da sala de cabeça baixa e amargurado.

- "Isto é uma vergonha, isto não se faz."

Aconselhei calma ao Jami. Lembrei-lhe que não estava na Europa e que tinha de seguir as regras daquele país, mesmo sabendo que aquele seguro era válido ali.

"Não é uma questão de dinheiro, mas de justiça, de fazer as coisas correctas." - disse-me enervado.

"Pois Jami... Mas tu estás em África. Aqui não podes chamar incompetente a um oficial da alfândega, mesmo que ele o seja. Foste tu que perguntaste se aquele seguro era válido. Na minha opinião nem o devias ter feito; seguias com ele e pronto, problema resolvido. Levantaste a questão e tiveste a resposta. Agora paga um novo seguro e vamos embora." - aconselhei-o.

Depois de uns dias na sua companhia era clara a nossa diferença de comportamentos em relação a muitos assuntos.
Eu, português e a trabalhar há 5 anos em Angola, era o relaxado, o tranquilo e o despreocupado e ele, finlandês, o nervoso, o desconfiado, o "certinho".
O Jami parava quando a polícia o mandava parar, andava com um cadeado enorme com que trancava a mota em todos os lugares que parava, não largava o capacete com medo de o deixar na mota, etc.

Um episódio que demonstra até que ponto vai a diferença entre as nossas maneiras de estar aconteceu dentro de um parque de campismo, instantes antes de irmos embora.
Tínhamos já tudo pronto, em cima das motas, e ele pediu-me para o lembrar de parar num super-mercado para comprar rolos de papel higiénico para a viagem.

-"Epá, aproveita, vai à casa de banho aqui do parque e tira um rolo. Não precisamos de parar mais." - disse-lhe, naturalmente.

- "Claro que não!!!  Isso seria roubar. Vou parar no super-mercado." - argumentou.

Mesmo com diferentes maneiras de pensar conseguíamos dar-nos bem e foi uma boa companhia até Windhoek, o Jami.


Papelada tratada, entrámos oficialmente no Botswana, um país que pode ser visto como uma história de sucesso neste continente.

Com grande influência sul-africana nos dias de hoje, o país foi no passado um protectorado britânico com o nome de Bechuanalândia.
Depois de alcançar a independência em 1966, três dos mais ricos jazigos de diamantes do mundo foram encontrados junto das suas fronteiras e é desde então, considerado um exemplo de estabilidade política, gozando de uma elevada taxa de crescimento económico.


Esperando o ferry para atravessar o Zambeze até ao Botswana

Vendedor de artesanato zambiano na fronteira



O magnifico Rio Zambeze e a nossa travessia


Entrada num novo país: Welcome to Botswana


"Circumcision can help prevent you against HIV "" - Placard dentro da alfândega
?! Diga lá outra vez ?!


Sem acesso ao mar, o Botswana tem cerca de 1100 quilómetros de Norte a Sul e 950 de Este para Oeste, sendo de idênticas dimensões ao Quénia ou a França.
A maior parte do país fica acima dos 1000 metros de altitude e consiste na sua maioria por uma vasta savana nivelada.
O Kalahari cobre cerca de 85% do país e no Noroeste do país, o Rio Okavango, segue desde a Namíbia e inunda a região arenosa, formando o espectacular Delta do Okavango.

Com vastas savanas cheias de vida selvagem, o país faz parte da África dos nossos sonhos. Uma vez que o Delta do Okavango e o Rio Chobe providenciam uma fonte de água acessível durante todo o ano, grande parte dos animais do Sudoeste africano encontra-se nesta região.

O frustrante neste país é mesmo conduzir uma mota, pois em todos os parques são proibidos estes veículos, tal é a densidade de animais selvagens.
Também esta altura do ano não é mais aconselhada, mesmo de carro, pois a chuva deixa tudo alagado e intransponível. Tudo está coberto de água e lama e mesmo para os mais bem preparados, a tarefa de atravessar certos parques naturais, é quase impossível.
Deste modo a ideia inicial que eu levava de atravessar o Parque de Chobe foi imediatamente descartada e seguimos assim para Sul na A33 em direcção à cidade de Maun.

Esta estrada, apesar de asfaltada e aborrecida, é conhecida por aqui serem normalmente avistados elefantes. Todo o cuidado é pouco pois é normal que manadas de elefantes atravessem o asfalto.
Em várias horas de condução vimos dezenas de elefantes, o que foi maravilhoso.
Estar perto de animais destes, no seu meio natural e longe de qualquer outra pessoa, é uma experiência muito intensa.
A maior parte dos elefantes que encontrámos fugiu para dentro do mato ao sentir a nossa presença (que é difícil disfarçar tal é o barulho das motas) mas houve casos em que nos observaram, parados, curiosos como nós. Nesse caso, o macho mais forte ficava o tempo todo a olhar-nos, alerta e pronto para nos pôr a correr se resolvêssemos aproximar-nos mais.
Mesmo estando na estrada todas aquelas experiências foram incríveis.

Uma vez chegada a "hora mágica", perto das seis da tarde, resolvemos parar no primeiro parque de campismo que nos aparecesse. Acontece que no GPS o único parque que apareceu ao Jami era a mais de cinquenta quilómetros de distância e tivemos assim de fazer uma vintena de quilómetros já escuro e entrar na picada que nos levava ao parque de campismo com muito pouca luz.

Cansados, quase sem luz e num trilho de areia solta, repleto de elefantes, seguimos durante algum tempo e por fim, ao longe vimos as luzes do acampamento. Aquele não era o sitio onde queríamos cair e chamar a atenção de qualquer um dos muitos elefantes. Estes, apesar de não parecerem perigosos dentro de um jardim zoológico ou à distância segura dentro de um carro num safari, são animais territoriais e podem ser bastante agressivos se tomarem a "invasão" do seu território como uma ameaça.
Chegámos por fim ao acampamento, onde depois de montadas as tendas, saboreámos um pão seco e umas batatas fritas de pacote com umas cervejas, sentados à volta de uma fogueira, espreitando uma manada de elefantes, a poucos metros de distância, que tinha vindo beber a um charco próximo.
Aquilo sim, era África no seu melhor.


Miss Africa no seu ambiente


Vários foram os encontros com elefantes


A poucos metros do nosso acampamento


De manhã, várias pegadas de elefante podiam ser vistas à volta das tendas


As aranhas também não andavam longe

Também havia "minas" no Botswana


No dia seguinte seguimos a estrada asfaltada em direcção a Maun e parámos em Gweta, uma pequena localidade que dá acesso ao Parque Nacional de Makgadikgadi.
Este enorme pântano de sal é, juntamente com os parques adjacentes Sua e Nxai, o maior do planeta (maior que o da Bolívia) , não havendo paisagem como aquela no planeta.
Especialmente durante o calor dos últimos dias de inverno, o parque ganha uma áurea especial, dada a sua austeridade. As miragens das ondas de calor destroem todas as noções de espaço e direcção, lagos imaginários aparecem diante dos nossos olhos para logo depois desaparecerem e animais selvagens tomam conta da região.

Nesta altura com o início da época da chuva existe alguma vegetação e alguma água no pântano, o que dificulta o seu acesso.
Depois de termos recebido alguns conselho dos donos de um dos hotel da região ganhámos coragem e decidimos tentar seguir a vedação do Parque de Makgadikgadi e ver, ainda que da parte de fora, o pântano. 
De outro modo, apenas de carro e pagando a entrada de cerca de 70 USD poderíamos ver aquela região.
Naquele momento tinha a sorte de poder fazê-lo acompanhado do Jami, pois de outra forma seria uma "loucura maior" e teria certamente hesitado.
Eram cerca de 40 quilómetros de areia (algumas zonas de areia solta, disseram-nos) numa picada, longe de tudo e todos, com animais selvagens e debaixo de temperaturas de mais de 30ºC.
Na realidade a picada não estava tão má como pensado e tudo correu bem até lá chegármos.
Estávamos no pântano de sal, dentro de um cenário inacreditável.
Aproveitámos para tirar ali uma fotografias e antes de irmos embora tivemos a sorte de ver uma manada de zebras a passarem mesmo ao nosso lado.
Segui-as por algum tempo, de mota. Agora  que me lembro daquela situação faço um largo sorriso.
Que momento bonito aquele: mais de vinte zebras selvagens a correrem num deserto de sal e eu, de pé em cima da mota, seguindo atrás.

Depois, e com vontade de seguir para Maun nesse dia, uns duzentos quilómetros para Oeste, despedimo-nos do parque e voltámos para a estrada de alcatrão que nos levaria até essa cidade.


Num dos portões do Parque de Makgadikgadi. Impedidos de ali entrar, fizemos a picada junto à vedação (e entrámos um pouco mais à frente...:) )


?!



Condução divertida em Makgadikgadi


Seguia pela picada atrás do Jami e a Miss Africa começou a engasgar. Ainda andei alguns quilómetros assim até que parou de vez.
Tentei avisar o Jami, buzinando mas em vão. Ele seguiu e eu fiquei parado.
A mota não pegava e lembrei-me da experiência que tinha tido uns anos antes, em Angola, em que tinha acontecido o mesmo quando regressava a Luanda vindo do Huambo e a mota se comportou exactamente assim.
Tentei diversas vezes colocar a mota a trabalhar e nada. Simplesmente não pegava. Seriam novamente os injectores da gasolina?! Seria a bomba de gasolina ou o filtro?!
Estava parado, no meio de uma picada muito pouco utilizada, longe de tudo e (quase) todos. Desta vez tinha a sorte de estar com o Jami e assim tinha alguém para me ajudar.
Porém, passados mais de 30 minutos o Jami não aparecia.
Na altura pensava onde raio se tinha enfiado ele. "Não percebeu ainda que eu não apareço?!" , pensei.

Mesmo com a mota avariada, no meio do nada e sem a presença do Jami fiquei sereno. Era apenas mais uma avaria. Tudo havia de se resolver.
Então, sentei-me junto à Miss, com uma erva entre dentes, e liguei o Ipod. A música aleatória que surgiu começou com a voz forte e a guitarra certeira da Concha Buika a cantar "Jodida pero contenta". Ri-me.
Nunca tinha ouvido esta faixa e pensei que talvez estivesse guardada para aquele momento.
Sorri e pensei em coisas boas, em recordações felizes. Não estava contente, mas a verdade é que também não estava assim tão "jodido"...
Vai correr tudo bem, pensei.
O Jami apareceu de seguida e explicou-me que tinha demorado pois uns quilómetros à frente o seu cabo de embraiagem se tinha partido e o tinha substituído, levando algum tempo.

De seguida foi até uma das entradas do parque e pediu ao guardas para me virem buscar e levar de carro. Uma vez mais a Miss teve de subir para cima de um carro e assim fomos até à vila de Gwena, ao hotel onde nos tinham dados algumas informações, umas horas antes.
Porém, pelo caminho, a frustração tomou conta de mim. Estava uma vez mais na caixa de um carro a levar a Miss avariada, vendo o Jami um pouco à frente em cima da sua montada. Estava cansado emocionalmente de tudo aquilo.
Naquele momento pensava já que seria uma avaria nos injectores e que apenas em Windhoek, no concessionário da BMW, me poderiam resolver a avaria. Teria assim de negociar uma boleia de mais de 1500 quilómetros, gastar muito dinheiro e deixar de ver um país bonito como o Botswana, por causa de uma estúpida avaria.
A passagem por aquele país acabava, aos meus olhos, de ser arruinada, enquanto no final daquela tarde me dirigia ao hotel onde teríamos de passar a noite.

Pouco depois de chegar já estava a negociar com dois carros o transporte até à fronteira com a Namíbia. Enquanto eu falava com os condutores o Jami e os gerentes do hotel, um casal simpático de sul-africanos, conversavam juntos da Miss África. Fui uma vez mais junto deles explicar o que tinha acontecido e naquele momento tentei colocar a mota a trabalhar e...pegou.

Senti-me envergonhado mas muito feliz. Afinal...pegou. Que bom. Então o que seria?!
Chegámos à conclusão que seria com certeza um problema com o filtro de gasolina que deveria estar obstruído. As lombas da picada devem ter feito com que a sujidade e a água que se encontrava no fundo do depósito viessem à superfície, obstruindo o filtro de gasolina, no interior do depósito, fazendo a mota parar.
O problema estava então encontrado e bastaria limpar o depósito e respectivo filtro.

Seria uma tarefa para o dia seguinte pois era final de tarde e tinha pouca luz para trabalhar.
Assim, na manhã seguinte, depois de dormidos acampados na zona relvada do hotel, começaram os arranjos. Foi tudo simples: drenei a gasolina do depósito, tirei filtro e bomba, limpei-os e soprei o filtro com um compressor e por fim, limpei muito bem todo o depósito que estava cheio de água e sujidade.
No final, montei tudo e alem de não terem sobrado peças, o motor trabalhava como novo.
Estava de novo pronto para arrancar.



Parado com uma avaria






Fases do arranjo da mota: drenagem da gasolina, limpeza do filtro e depósito



Ainda houve tempo para uns mergulhos na piscina e um bom almoço antes de rumarmos até Maun onde íamos ficar alguns dias a explorar a região do Delta do Okavango.

O Delta do Okavango é o maior delta interior do mundo. Está situado no local onde o Rio Okavango esvazia as suas águas nas areias do Deserto do Kalahari.
O Rio Okavango transporta a água da época da chuva desde Angola durante cerca de 1200 quilómetros, espalhando-se depois naquela região por uma área de 250x150 quilómetros.
A água atrai, especialmente na época seca, animais de outras regiões, criando ali uma das zonas de maior concentração de animais selvagens de todo o continente.

A maneira tradicional de visitar o Delta, ou pelo menos parte dele, é de canoa tradicional de nome mokoro. Uma vez reunidos com os guias, navegámos por entre nenúfares e entre densa vegetação até uma das ilhas onde passámos a noite acampados.
A água do delta é extremamente limpa e fresca e, apesar de termos de ter alguns cuidados com os animais que por aí se encontram, um mergulho naquelas águas era obrigatório.
A tarde foi passada a dar mergulhos e no final do dia demos um passeio pela ilha encontrando alguns hipopótamos e um par de elefantes.

No dia seguinte bem cedo, depois de passar a noite sob as estrelas no interior do parque do Okavango passámos a manhã a andar por entre a vegetação de uma das ilhas, cheias de animais.
Zebras, girafas, elefantes e impalas  foram alguns dos animais que observámos dentro do seu habitat, uma das zonas mais espectaculares do planeta, sem dúvida.    


Ida de lancha rápida até ao parque


A Miss Africa foi trocada por um mokoro, nesta parte da viagem








Por entre os nenúfares, é total a serenidade naquele ambiente


A calma deste local só é cortada pela presença (assustadora) dos animais residentes na região


Regressando depois até à cidade de Maun, descansámos, partindo no dia seguinte em direcção à fronteira com a Namíbia onde chegámos já no final do dia.

Estava quase a completar uma volta de mais de seis meses e tanto havia ainda para andar até Portugal...