terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sahara Ocidental e Marrocos (o Mar)

 
Depois de várias horas de formalidades na entrada, cheguei finalmente ao Reino de Marrocos. Sendo mais correcto (e justo) entrei foi no território ocupado por Marrocos, o Sahara Ocidental.

Um pouco antes, enquanto esperava que encontrassem um cantinho pequeno no meu passaporte para que o carimbassem (acabou a viagem sem qualquer espaço, com carimbos em cima de carimbos) conheci dois companheiros motards que esperavam a sua vez, para poderem seguir para sul.
A viagem para estes dois tinha começado à poucas semanas e irá leva-los até à África do Sul.
Falámos um pouco e ouvi as suas queixas acerca da demora que ali na fronteira estavam a ser sujeitos.
Comentei com eles:

- " Isto é apenas o começo amigos e são homens de sorte pois estão a começar uma aventura. Daqui para a frente vão encontrar uma África totalmente diferente do que viram em Marrocos. Invejo-os."

Despedi-me com alguma nostalgia. Entrei em Marrocos, ainda a vários milhares de quilómetros de casa, mas já totalmente diferente do resto dos países, longe das picadas de terra vermelha com centenas de crianças a correr atrás da mota; o último país de África da minha Aventura.



Boas estradas "Sahara" adentro


Com alguma tristeza (que o sorriso disfarça) colei o último
"cromo na caderneta": a bandeira de Marrocos



Depois da minha conturbada estadia em Nouadhibou, uma cidade no norte da Mauritânia, onde a minha tenda foi assaltada, o conforto e segurança de um quarto veio mesmo a calhar.
O tempo em que tomava banho a balde com água fria (quando havia água), dormia na tenda num local com poucas condições, fazia 50 km num dia de condução tal era a estrada, onde os parafusos da Miss saltavam com  a vibração, acabando o dia com várias camadas de poeira e exausto, tinha acabado. Sabia que a partir dali tudo seria diferente e confesso que parte de mim, a maior parte posso dizer, estava triste.

Marrocos faz a transição geográfica entre um continente e outro, mas mais do que isso, as características deste país também serviram para me  preparar mentalmente para o fim da viagem.
Não sendo África a que estou habituado e que tanto amo, também está longe de ser como a Europa e nas semanas que se seguiram fui surpreendido pela extraordinária beleza de um país diferente de tudo o que eu já tinha visto até então.
Seria com toda a certeza um embate mais difícil se apanhasse o avião para Portugal enquanto estivesse no centro de África, no Congo, Camarões ou Gabão.

Já no Sahara Ocidental, território ocupado por Marrocos desde 1975, rolei no dia seguinte, na Miss quase 800 quilómetros, aproveitando a excelente estrada alcatroada rumo a norte.

Quando, em 1975, a Espanha abandonou a sua antiga colónia, deixou para trás um país sem quaisquer infra-estruturas, com uma população analfabeta e na miséria.
Já era pretensão de Marrocos e Mauritânia ocupar aquele território e o vazio criado por Espanha foi imediatamente aproveitado por aqueles dois países (a Mauritânia com 1/3 do território e Marrocos com o restante) que, invocando direitos históricos, invadiram o Sahara Ocidental.

Interesses económicos, naturalmente, estão ligados a esta invasão. Mais do que areia, o território têm uma riqueza enorme derivada da sua rica costa marítima e ao minério que possui no interior.

Os habitantes autóctones do Sahara Ocidental,  denominados saaráuis, cerca de 250.000 pessoas, foram na sua maioria obrigados a viver em campos de refugiados (como o de Tindouf, na vizinha Argélia) onde formaram a República Árabe Saaraui Democrática e a Frente Polisário, movimento político que luta pela separação de Marrocos desse território. 

Desde 1975 que a Frente Polisário tem realizado uma série de ataques esporádicos à zona dos fosfatos, patrulhada militarmente por Marrocos, tentando interromper o seu escoamento.
Mesmo com a participação da ONU ainda não foi obtido acordo entre as duas partes, mesmo com alguns países a reconhecerem a independência do Sahara Ocidental, com a África do Sul.

Tinha sido avisado de problemas graves em Dakhla, uma cidade costeira, onde poucos dias de entrar na região, dezenas de pessoas tinha sido morta em confrontos com a polícia marroquina.
Evitei assim entrar na cidade e segui rapidamente para norte, aproveitando o excelente asfalto para longas tiradas, às quais não estava já acostumado.
Depois de quase 800 quilómetros de estrada, onde parava frequentemente para admirar a incrível paisagem, os bandos de camelos que se iam passeando e os curiosos sinais de trânsito em árabe, cheguei a um pequeno acampamento onde descansei da jornada, sob um confortável colchão, depois de saborear um delicioso chá de menta. Para quê pedir mais?!




A Miss chama a atenção até aos camelos



Incrível como a minha máquina fotográfica chegou inteira a casa
(aqui a levar um banho de lama durante a refeição dos bichos)


Diga lá outra vez?!



Final do dia de condução: mesmo com quase 800 km ainda há
vontade para admirar o incrível pôr-do-sol no deserto


Tenda típica da região




No dia seguinte mais do mesmo: paisagens incríveis e...camelos


Saindo do Sahara Ocidental, a próxima paragem foi a cidade de Sidi Ifni, umas centenas de quilómetros a norte, situada na costa atlântica no sudoeste de Marrocos.

Ifni é o nome de uma antiga colónia espanhola na costa do país, a sul de Agadir e em frente às Ilhas Canárias. Com cerca de 1,5 mil Km2 de área e uma população de cerca de 50 mil pessoas, foi uma colónia espanhola de 1859 até 1969 e sua capital era Sidi Ifni.
A presença espanhola na região data do tempo dos Reis católicos (século XV), estando o crescimento da economia do povoamento ligado ao intercâmbio entre Espanha e Portugal baseado na troca de escravos por cana de açúcar. 
 Já no século XX, em 1969, após pressão internacional, o governo espanhol abandonou os territórios de Ifni (assim como o Sahara Ocidental), deixando como marca da sua presença a fortaleza em Sidi Ifni e a arquitectura da cidade.

Alojado a poucos metros da praia, um lugar perfeito para apreciar a vista sobre o mar e o forte, deixei-me ficar uns dias naquela pacata vila de pescadores.
O nome da pensão onde fiquei, Suerte Loca, acaba por espelhar a "estrelinha" que sempre me acompanhou nesta viagem (e ao longo da vida), sendo sem dúvida um local onde apetece ficar.

Quanto à vila, depois de ter conhecido vários locais em Marrocos, devo dizer que é um dos sítios mais agradáveis que conheci neste país. Com muitos poucos turistas (época baixa?!), preços reduzidos e uma tranquilidade absoluta, aproveitei para me deixar ficar mais tempo do que contava quando ali cheguei.
Para isso muito ajudaram as sardinhas que comi, a todas as refeições, e que, depois de longos meses sem lhes sentir o cheiro, desforrei-me, "ferrando-lhes o dente" como um bom português. 

A primeira vez que me apresentaram a conta de um jantar eu não quis acreditar: o equivalente a 2 euro por um prato com 10 sardinhas, pão, salada, azeitonas (e que boas azeitonas...) e uma bebida, só podia ser engano.
Mas não, a qualidade da comida neste país é de facto muito maior do os países mais a sul e os preços bastante mais reduzidos.
A juntar à qualidade e ao preço baixo da comida, a tranquilidade do local, o delicioso chá de menta (que rapidamente substitui pelo café), as agradáveis esplanadas onde passava horas a ver quem passava, e as praias desertas da região fazem deste local um posto de paragem obrigatório.







Um encontro com um pescador solitário antes de
alcançar a vila de Sidi Ifni


Encontro casual com dois viajantes polacos
no Suerte Loca





A vila e a praia de Sidi




O mercado da vila, onde gostava de passar
algumas horas a "vadiar"

Obriguei-me a quebrar a inércia provocada pela tranquilidade do sítio e sair dali, seguindo mais para norte rumo a Essaouira.

Optei na minha rota a seguir por Marrocos, depois de algumas análises de modo a tentar passar em vários locais que queria visitar, em conhecer primeiro a costa e só depois seguir para as montanhas e deserto.
Digo-vos que nunca estive num país com tanto para oferecer como este, sendo bastante difícil ter de optar pelo caminho a seguir. 
O facto de puder escolher as estradas, de ter várias alternativas, ao contrário da quase maioria dos países por onde passei, também tornou a escolha mais difícil.

Deste modo, tentando escolher as zonas mais interessantes sem olhar para os quilómetros feitos na Miss, sai de Sidi rumo a Essaouira, passando pelas montanhas do Anti-Atlas e pela vila de Tafraout, numa fabulosa estrada que serpenteia pelas montanhas, acabando em Agadir, onde segui sempre junto ao mar até à bonita Essaouira. 





Fabulosa estrada e cenários de montanhas do Anti-Atlas, num
longo dia de condução entre Sidi Ifni-Tafraout-Essaouira


Essaouira (antiga Mogador) é uma cidade da costa atlântica onde os portugueses no século XVI construíram um forte, designado por Castelo Real de Mogador, conquistado pelos marroquinos alguns anos depois.
O desenvolvimento desta cidade veio quando o sultão de Marrocos escolheu o local para ser o porto exportador do país, acabando por designar-se de Essaouira.
O comércio entre África e a Europa foi o principal beneficiado do projecto do sultão e também a existência deste porto marítimo nas expedição de caravanas provenientes do deserto trouxe outros desenvolvimentos, de natureza cultural e social, aquela região.
Essaouira tornou-se então num ponto de passagem e de comércio de escravos que vinham da África Central e este facto deixou as suas marcas sociais na cidade, onde se pode ver uma mistura de árabes, berberes e negros.
No séc. XIX, este porto monopolizava cerca de 60% de todo a actividade comercial entre Marrocos e o exterior.

A Essaouira têm sido dados diferentes nomes como: "A pérola do Atlântico", "lindamente concebida" ou "A Bela Adormecida".
Esta cidade, Património da Humanidade, mantém sem dúvida um encanto especial e a autenticidade da sua Medina, ainda que muito voltada para o turismo e do seu movimentado porto pesqueiro, continuam a exercer sem dúvida um grande fascínio.
Pessoalmente gostei muito da mistura de pessoas que ali se encontra e apesar de milhares de turistas visitar aquele espaço, a maioria continua a ser local, sendo o comércio muito voltado para o dia-a-dia das pessoas que ali habitam.  
Passei assim vários dias a andar pelas ruas no interior da Medina, perdendo-me constantemente, fascinado pelo mellah, o antigo quarteirão judeu.
Junto ao porto de pesca, onde os barcos vão chegando carregados de peixe, perto do torreão conhecido como a “Torre de Belém”, os turistas  misturam-se com os pescadores e os comerciantes de peixe.
Todas as manhãs ia até ali, ao porto, ver os barcos que chegavam, admirando toda aquela cena, que imagino, pouco se tenha alterado com o passar dos anos.





Comércio no interior da Medina em Essaouira






Pormenores no antigo bairro judeu



Cenas do quotidiano numa cidade carismática
Bancadas com produtos naturais
(especial destaque para o "Viagra Touareg")

Gente de Essaouira



























Registos do porto de pesca da cidade




Final de tarde com vista para a "Torre de Belém",
acompanhado por um chá de menta


Depois de uns dias passados em Essaouira segui para Marraqueche e para as montanhas do Atlas.