domingo, 26 de junho de 2011

Admirável Congo: mecânica, ninjas e dança.


Muitas vezes confundido com a República Democrática do Congo, o Congo (Brazzaville) oferece um ambiente mais descontraído, uma versão mais segura e menos conturbada que o seu país irmão.

A capital, Brazzaville, aparenta um calma invulgar nos países desta região de África e surpreendeu-me pela positiva.
Depois da cansativa jornada da travessia do Rio Congo, ficámos instalados no Hotel Hippocamp, morada sagrada para todos os que passam por aqui; e percebe-se bem porquê: a estadia é gratuita para os overlanders (viajantes) e a comida é simplesmente fabulosa.
De longe o hotel com a melhor cozinha que encontrei em toda a viagem; creio que será difícil bater aquela comida vietnamita onde tudo é simples e saboroso.

O Olivier, dono e gerente do espaço, juntamente com a mulher vietnamita e os quatro filhos pequenos tornam tudo muito familiar e agradável.
Juntando à simpatia do casal, o facto de ser gratuita a estadia, a comida deliciosa e a cidade agradável podem perceber facilmente porque não me custou muito ficar ali mais do que uma semana.

Acampados numa sala de estar, eu e o Olivier (o francês motard que viajava comigo desde Luanda) aproveitámos para fazer a manutenção às motas e tentar resolver alguns dos problemas que fomos verificando pelo caminho.
Enquanto o francês limpava a terra que tinha no carburador da sua velhinha Honda (o filtro de ar não estava a fazer o seu trabalho), eu tinha de resolver o problema da direcção da Miss África que não estava nada bem, tornando qualquer saída do asfalto muito difícil de controlar.

Ainda antes de resolver o assunto da direcção, na minha regular inspecção visual a tudo o que é componente da Miss, vi que a grade traseira estava a rachar e não tardaria muito, com o saco grande que carrego, a que partisse.
Era assim prudente  tentar resolver ali o problema e não esperar até estar no "mato" e a grade ceder para ter de transportar o saco ao colo.

Bem, cerca de três horas depois a grade partida deixou de ser um problema.
Após esboçado o "projecto", apanhei um táxi até um dos muitos serralheiros que se encontram na berma da estrada de qualquer cidade em África (um semelhante aquele que me soldou o quadro da mota pela segunda vez) e pouco depois tinha a estrutura feita...e pintada.



 Acantonados no Hippocamp em Brazzaville

Aparecimento de uma racha na grade metálica da Miss


Trabalho do serralheiro local: corte de cantoneira em ferro


A preparar-se para soldar (reparem no aparelho - T.I.A.)


Trabalho em curso

Nem o bêbado estendido a poucos metros parece importar-se com o barulho do aparelho


O mestre em acção



Este é o resultado final. Não é bonito mas é resistente.


Com menos um problema para resolver tinha de concentrar-me agora em tentar resolver o da direcção da mota.
Como na medicina por vezes o mais  difícil é fazer o diagnóstico correcto, perceber o que está a causar o problema e neste caso a dificuldade residiu aí: sabia que a direcção não estava normal, mas dada a minha inexperiência de mecânica e o facto de estar longe de qualquer especialista tornava as coisas complicadas. E ainda depois do problema estar identificado teria de encontrar a oficina para ajudar a fazer o trabalho e, mais importante ainda, teria de ter a peça para substituir.
 
Neste aspecto, posso agradecer aos presidentes de alguns países africanos por escolherem para a sua guarda as melhores motas do mundo: BMW´s.
Mesmo estando em África as coisas não podiam ser mais fáceis para obter peças para a Miss Africa. Apenas o que é de rápido desgaste como pneus, filtros de ar, óleo, etc. é mais difícil.
Será certamente mais fácil arranjar um motor completo para um modelo como o meu (GS 1100) do que um jogo de pneus novos nesta região.
 
A minha estrela brilhou (uma vez mais): procurei, conheci as pessoas certas e a certa altura só tive de escolher as peças que queria.
Depois de descobrirmos a origem do problema (os dois sinoblocos que fazem a ligação das forquilhas com a "ponte" da direcção estavam desfeitos) foi "apenas" uma questão de tentar arranjar as peças usadas de uma outra mota e aplicá-las.

Das experiências que vivi neste país só posso dizer bem do seu povo, pela sua simpatia e generosidade. Acabei por conhecer boas pessoas que me ajudaram sem terem qualquer outro interesse que não fosse a amizade.
Estou-lhes muito grato por isso e ainda neste momento, estando avariado em Libreville, me telefonam a saber se preciso de algo.

Porque nunca é demais agradecer, aproveito para enviar um forte abraço aos meus amigos Elvis (guarda e mecânico  da guarda-presidencial) e Frederic Batanga (dono de uma das maiores empresas de segurança na capital e um amante das duas rodas).
 
MERCIS À MES AMIS CONGOLAIS ELVIS E BATANGA!!!

Depois do Elvis me ter oferecido as peças que precisava (e ainda uns discos novos para a Miss e um cubo para a roda da frente, que acabei por não trazer pois era bastante pesado) e o Frederic ajudar a encontrar a oficina com uma prensa para fazer o trabalho de substituição, eu e a Miss estávamos prontos para de novo rolar.




A minha "garagem" durante uma semana e a Miss uma vez mais despida


A ponte da direcção da Miss e uma emprestada




Ida à casa do Elvis escolher as peças que queria. Acabei por sair de lá com uma roda e forquilha completa para desmanchar para peças


A Miss estava pronta para rolar



Volta pela bonita cidade de Brazzaville e a sua imponente basílica


Com as motas prontas ficámos ainda mais uns dias para tentar ajudar outro viajante, um checo residente na Zâmbia que, com os seus 73 anos, está determinado em chegar à Europa no seu Land-Cruiser. Tendo optado por fazer a travessia do rio Congo numa barcaça estava há já uma semana à espera de grua para retirar o carro do porto. Uma vez que não fala francês, toda a burocracia e sonolência dos trabalhadores do porto fazia com que o víssemos todos os dias chegar ao hotel, no final da tarde, sem qualquer desenvolvimento.
O Olivier resolveu ficar e ajudar o senhor. Precisou apenas de um dia e meio e depois disso o carro estava fora e pronto a seguir viagem.

Finalmente prontos para seguir viagem estávamos também nós e assim no domingo de manhã, depois de me despedir da "noite" em Brazzaville, estava preparado para me fazer à estrada e conhecer melhor aquele país.
O Olivier estava mais atrasado na preparação e resolvemos então separar-nos.
A verdade é que estamos os dois habituados a viajar sozinhos e  depois de vários meses nesse registo, seguindo apenas a nossa intuição, com os nossos planos individuais e com os nossos próprios ritmos, é difícil viajar acompanhado.
Para mim e para o Olivier foi melhor assim e senti-me bem em rolar sozinho. Não sabia onde iria dormir naquela noite, quantos quilómetros iria fazer mas estava feliz desse modo.


Na noite por Brazzaville

Despedida do Hippocampe Hotel
(um do casal da fotografia viaja por África num WW antigo na companhia do seu pastor-alemão...)


Segui então sozinho, eu e a minha Miss rumo a Oeste. A ideia seria chegar a Dolisie uns dias depois e rumar a Norte em direcção ao Gabão.
A estrada que sai da capital em direcção a Oeste, ao longo da fronteira com a RDC é famosa por duas razões. A primeira devido aos seus quilómetros de buracos, areia, muita lama na época de chuva, tornando-a praticamente intransponível nessa altura.
A segunda razão é bem mais perigosa e exige mais respeito, uma vez que passa em território ninja.
Para se perceber quem são os "ninjas" deixem-me tentar resumir os últimos anos políticos no Congo.
 
 
Sassou, o actual presidente do Congo foi em 1992 eliminado nas eleições pelo professor universitário Pascal Lissouba. Sendo natural de uma região do sul do país, Pascal prometeu devolver novamente o poder aquela zona do país e, uma vez no poder, apoderou-se de muitos dos rendimentos dos enormes recursos do Congo para beneficio próprio. Como muitos outros fez desaparecer biliões de dólares do seu país e usou a sua milícia (os chamados Cocoyes) para "intimidar" os habitantes das outras regiões do Congo.
Em 1993 a situação descambou em guerra civil com os apoiantes do ex-presidente Sassou (chamados Cobra) de um lado e os Cocoyes apoiados pela milícia do Primeiro Ministro Kolelas (os chamados Ninjas).
Lissouba continuou no poder até 1997 quando os soldados de Sassou entraram em Brazzaville e o fizeram partir. Nessa altura muitos habitantes civis partiram para o mato e milhares morreram se não pelas balas, de má nutrição.
Em 1999 a guerra civil continuava desta vez entre Cocoyes e Ninjas.
Pressionado pela comunidade internacional Sassou resolveu legitimar o seu poder com eleições democráticas (sobre a relação entre a comunidade internacional, África e a chamada "democracia" há tanto que se pode dizer), que obviamente ganhou com 90% dos votos.
De salientar que nenhum dos seus principais adversários (Lissouba e Kokelas) teve "autorização" para participar.
Assim, sem surpresa, a violência reapareceu depois das "eleições democráticas" entre Ninjas e forças governamentais mas um acordo de paz foi assinado em 2003 mantendo as coisas menos instáveis.

Porém, para dizer a verdade, sai de Brazzaville rumo a Oeste preocupado apenas com os buracos e a areia que sabia que iria encontrar pelo caminho.
Uma hora depois de deixar a capital começou a areia. Ali, sabendo faltarem quase mil quilómetros até voltar a sentir o asfalto de novo, apercebi-me da sorte que tinha tido em ter conseguido as peças para a direcção que, mesmo usadas e longe de estarem a 100%, permitem-me enfrentar as estradas de areia com outra desenvoltura.

As estradas de África, aquelas que sempre gostei, com a sua cor característica, todo o ambiente das aldeias (por qualquer aldeia que passasse, milhares como devem imaginar, crianças e adultos se levantavam de espanto ao ver-nos passar; muitos apenas acenavam, outros gritam), os cheiros e finalmente a floresta eram tudo o que tinha sonhado.

Estar ali, sem prazos, nem pressa, podendo parar sempre que quisesse, falar com as pessoas, tirar fotografias, viver tudo no meu ritmo, era tudo o que sempre quis quando comecei esta viagem.
 



Aqui começava a areia. Asfalto só dali a quase mil quilómetros.




Começava também esta África tão especial



Nem tudo era fácil.
Aqui depois de uma queda tive quase trinta minutos para levantar a pesadona Miss





Os camiões e o estado da "estrada" eram um desafio: estava finalmente no Congo que imaginei


Na primeira noite acampei no espaço de um mótel numa das vilas que encontrei pelo caminho.
No dia seguinte continuei viagem, bem cedo rumo a Dolisie. A estrada era muito difícil, com bastante areia e valas causadas pela chuva e o pior eram os camiões que, além da poeira que levantavam, eram um perigo enorme na condução pois nem sequer abrandavam ao ver-me no seu caminho.
Nunca, como naqueles dias levei com tanta poeira. Mesmo assim, coberto de terra, em estradas de areia, com camiões e vala provocadas pela chuva, a Miss continuava impecável, rolando com aquela barulheira característica da sua ponteira Akrapovic.

Pelo caminho cruzei-me com um inglês que vinha numa GS1200 desde Londres. Trocámos algumas impressões, dicas e sugestões e seguimos os respectivos caminhos.
Ele não virá nenhum viajante desde que sairá do Benim, muitos milhares de quilómetros para Norte.

No final de cada dia, coberto de poeira e suor, mal alimentado, com o rabo dorido e as costas em mau estado depois de passar o dia a conduzir de pé, tinha um sorriso. A vida corria-me bem: não tinha problemas com a mota, tinha algum dinheiro no bolso e passaporte.
Podia continuar viagem e cumprir a meta de chegar a Portugal.
 
Afinal foi isto que eu escolhi fazer; era ali que eu decidira estar.
Mesmo sem um bom café, um prato de comida quente ou sequer uma almofada (lamento pai, a almofada que me mandaste de Portugal chegou com o pipo avariado :) ), estou a fazer aquilo que quero e desde que a mota ande, eu esteja bem de saúde e saiba que tudo está bem com a família "lá na terra" fico feliz.
 
 
Paisagens magníficas


Aqui depois de uma "queda" ligeira depois de um camião me ter cortado o caminho


Aí vem outro camião.
Só resta colocar a viseira do capacete para baixo, parar e preparar-me para a poeira


Encontro com um motard inglês


 Sempre as crianças...





Cenários bonitos e alguns encontros curiosos



PASTIS: a bebida (licor de anis) mais famosa do que cerveja por estas bandas 



Aqui uma paragem para abastecer-me de água (tive de dar à "bomba")




Vida de mato: o balde para lavar-me e o belo do pequeno-almoço


O Congo é um país extraordinário. A região por onde passei é muito bonita e tenho pena de não ter ido para norte, onde ficam as florestas daquele país. Noutra altura talvez o faça.


A caminho do Gabão 







Perto da estrada algumas mulheres cantavam enquanto apanhavam peixe num riacho perto. Parei e fiquei um pouco. São momentos como este que me fazem viajar.


 


Esta é a estrada de acesso à principal fronteira entre o Congo e o Gabão 
 

Dias depois a chegada à fronteira com o Gabão
(onde o filho de um funcionário da migração quis sentar-se na Miss)


Cheguei assim ao Gabão e além das estradas terem melhorado pouca coisa se alterou.
Dou graças por isso.


"Como a malária, África deixa-nos sempre qualquer coisa no sangue. Nunca seremos totalmente brancos outra vez."