quinta-feira, 15 de setembro de 2011

(nada) MALI !!!


Entrei no Mali com pressa. Não consigo explicar que tipo de urgência trazia comigo mas isto acontece-me sempre que viajo durante muitas horas seguidas; dou por mim imerso numa ansiedade de chegar, seja lá onde for, o que me faz andar mais depressa, cometer mais erros de condução e claro está, cansado, pode ser muito perigoso.

Quando passei a fronteira já a tarde passava de meio e ainda tinha muito para andar. Queria ir até Bandiagara, a vila, e não sabia o estado da estrada nem muito bem porque queria lá chegar. Talvez fosse apenas por estar já há alguns dias longe do conforto de um "hotel para ocidentais" onde pudesse tomar uma refeição "normal", acompanhada de umas cervejas frescas.

Poucas horas depois, enquanto o sol se punha ainda estava eu a subir a Falésia de Bandiagara, a cerca de vinte quilómetros do meu destino. Mesmo exausto com a viagem, parei para admirar aquele espectáculo natural: era merecido.
A juntar à beleza única da falésia, com mais de duzentos quilómetros de extensão, as várias cascatas que se formaram durante esta época acrescentam  uma fascinante visão.
Ao longe via-se já a forte trovoada, ameaçando chuva que chegou logo depois de eu passar a primeira aldeia no topo.
Mesmo a rolar numa estrada de lama, formada pelas chuvadas dos dias anteriores, pretendia continuar e quando começou a chuva torrencial recusei parar. Claro está que o piso ainda se tornou mais escorregadio e, naturalmente, dei uma valente queda.

Algumas pessoas perguntam-me como consigo levantar a Miss quando ela cai ao chão, tal é o seu peso. Posso dizer-vos que a força (associada à experiência de já a ter levantado dezenas de vezes em várias circunstâncias) aparece (quase) sempre, ainda mais quando estou no meio da lama, a chover e trovejar, como se passava naquele momento.
Uma vez mais, levantei-a e, ainda a quinze quilómetros do meu destino, decidi sensatamente dar meia volta e ficar na aldeia por onde tinha passado à poucos minutos atrás.
Ao chegar, continuando a chuva torrencial, enfiei-me pelo primeiro (e único) portão que vi com um sinal a anunciar um albergue.
Lá dentro ninguém se encontrava e uma hora depois continuava sozinho sem que ninguém aparecesse.

Como sou de poucas cerimónias (molhado e cansado ainda menos) arranjei logo um local coberto onde colocar a Miss, estendi o fato encharcado e montei tenda, preparando-me para dormir.
De facto o local parecia abandonado com sinais de falta de uso e cheguei a pensar que estivesse fechado. Mais tarde, no entanto, a luz de uma lanterna ao longe revelou ser o "gerente" do espaço, um rapaz novo que juntamente com o irmão, um guia Dogon que acompanha as visitar às aldeias na falésia, dão o apoio mínimo (e suficiente) às poucas pessoas que por aqui, nesta altura, vão aparecendo.

Enquanto esperava por uns cuscuz com molho de tomate feito pelos rapazes, usei o telemóvel de um deles para ligar para casa, conseguindo ficar a saber que todos me procuravam, preocupados por não terem qualquer noticia minha há uns dias (como já contei anteriormente).
No final da conversa a minha mãe perguntou-me se estava num hotel em condições e eu, sentado numa cadeira de bambu, perto da tenda e da Miss, a chover, não deixei de sorrir com aquela pergunta e responder que sim, que estava bem alojado.
Sorri porque pensei em como tudo é relativo e como as coisas mudam com as circunstâncias, com o local onde estamos e com o nosso cansaço.
Há primeira vista para muitas pessoas dormir ali seria algo difícil, impensável até.
Eu também gosto de conforto, de uma boa cama com lençóis brancos e cheirosos (já não me lembro bem da sensação de dormir assim, mas sei que gosto), casa de banho com água quente e toalhas impecáveis.
Mas ali, protegido da chuva, com roupa seca no corpo e já à espera de uma refeição quente, tudo me parecia suficiente; não precisava de mais, nem de melhor.
Para todos os efeitos, foi ali que eu escolhi estar.



Falésia de Bandiagara no final da tarde


Acampado numa aldeia junto à falésia: para quê pedir mais?!


Depois de uma breve conversa com um dos rapazes, decidi passar os dois dias seguintes a fazer uma caminhada pela falésia, de aldeia em aldeia, conhecendo um pouco mais a fascinante cultura e fabulosa arquitectura do povo Dogon.

O rapaz contou-me que estavam todos a passar enormes dificuldades dada a escassez de turistas (o mesmo se passava no Burkina Faso, como já tinha comentado) o que me impressionou bastante pois tinha ideia que aquela região, bem outros destinos no Mali, eram áreas bastante frequentadas por estrangeiros, prestando o turismo uma preciosa ajuda à pobre economia local.

Assim, depois de uma boa noite de sono, arrumei a mochila, despedi-me da Miss e comecei a caminhada.
A Falésia de Bandiagara é uma fractura geológica com mais de duzentos quilómetros de extensão e as suas paredes escarpadas serviram no passado como refúgio natural para os Dogon, que procuravam ali protecção e abrigo, camuflando as suas aldeias nesse local.
Construídas da mistura de argila, palha e esterco de vaca (em África diria mesmo que as vacas, pelo que produzem e ajudam a produzir, são o melhor amigo do homem), as estruturas eram construídas junto às paredes mais altas do penhasco e a maioria só era acessível através de escalada em cordas feitas de fibra de embondeiro.
Desta maneira, do alto da falésia os Dogon controlavam mais eficazmente as suas ameaças, defendendo-se de outras etnias que os procuravam escravizar.
Rapidamente chegámos até ao topo da falésia, vindos da aldeia onde tinha pernoitado e começamos a descida até à sua base onde visitaríamos várias aldeias.
O cenário da falésia é, como já o disse anteriormente, de uma beleza única e algo que não estava à espera tal é a sua dimensão.
Àquela hora da manhã, com uma luz suave e dourada, o passeio foi mágico, passando por várias cascatas e pequenos riachos que se precipitavam rochedo abaixo.
Depois, foi tempo de começar a apreciar as aldeias, passear por entre os milheirais, através da estrada que percorre paralelamente a falésia, testemunhando assim o dia-a-dia daquele grupo, de uma forma morosa e tranquila.







Descida da falésia: um cenário majestoso


Os Dogons chegaram à falésia por volta do século XV, época da expansão do Império Mali.
Contudo aquele local já era habitado por outros povos, havendo registos de habitantes desde 3.000 anos A.C.: os Telem, que mais tarde foram "absorvidos" pelos Dogon,  deixando aqueles algumas das cavernas que ainda hoje se podem apreciar. Ali encontram-se os locais mais sagrados para os Dogons, abrigando sepulturas, pontos de água, locais de rituais de feitiçaria, etc.
Hoje aquelas instalações são apenas usadas para armazenar alimento para o gado.

Este grupo com cerca de 200 mil habitantes, possui um estilo de vida muito complexo, uma arquitectura fascinante e um conhecimento astrónomo elevado, facto já documentado por vários estudiosos.   
Durante a minha estadia nas várias aldeias pude apreciar diferentes pormenores nas casas tais como as originais fechaduras,  as lindas portas talhadas, as escadas em madeira peculiares,  os magníficos pilares esculpidos, etc.
Tudo é levado ao pormenor e é necessário estar atento para se puder apreciar todos estas deliciosas pequenas coisas.   

Apesar de ser fundamentalmente um povo animista, já se vêem em quase todas as aldeias Dogon por onde passei  mesquitas, sinais dos tempos modernos.










Aldeias Dogon e a Falésia de Bandiagara













No topo de uma antiga aldeia Dogon com
vários pormenores das suas edificações








Portas, escadas, janelas e outras características
marcantes da arquitectura dogon



Vista de uma aldeia camuflada pela falésia e
uma mesquita no centro de uma das aldeias







A caminhada continuou até ao anoitecer sempre com a falésia como cenário.

A caminhada foi longa e dura (a minha forma já não é o que era, também...), debaixo de um calor intenso e no final do primeiro dia, completamente exausto, retemperei forças com uma galinha assada no carvão para depois me estender debaixo das estrelas num dos locais mais fascinantes onde dormi até hoje.
O céu estava estrelado, sem nuvens e conseguia-se destingir a ténue silhueta da falésia. Dormi em cima de um colchão improvisado com uma rede mosquiteiro e não me lembro de ter sonhado; estava muito cansado.
No dia seguinte esperava-me a subida ao topo da falésia e a longa e extenuante caminhada até casa, passando ainda, claro está, por diversas aldeias.

Sempre que passávamos por alguém o guia dogon, fazia o habitual cumprimento de uma forma curiosa e engraçada, o que me provocava sempre um sorriso.
Várias vezes não consegui mesmo deixar de dar uma gargalhada tal era o gesto e a linguagem tão curiosa. Traduzindo, segundo ele próprio me disse, era algo do género:

- "Bom dia, como vai?"

- "Está tudo bem."


- "Como vai o marido, os filhos, a família?"


- "Estão bem."


- "Como estão todos na aldeia?"


- "Tudo bem."


- "Os mais velhos na aldeia, estão todos bem?"


- "Sim, todos."


Aí, o processo invertia-se e as perguntas e respostas feitas e dadas novamente pela outra pessoa.

Isto era conversa para demorar uns minutos pois as respostas não eram imediatas e algumas das vezes todo o "diálogo" era tido enquanto as pessoas caminhavam, sem sequer pararem, o que tornava tudo algo como uma espécie de ladainha e muito caricato de se assistir.

Comédia à parte, este tipo de cumprimento, bem como uma série de "regras de educação" que se verifica em todos os países africanos por onde tenho passado, tem sempre um papel muito importante e é levado muito a sério por toda a comunidade.



Anoitecer, dormir e acordar numa aldeia dogon em Bandiagara












A cansativa subida da falésia, uma visita a algumas aldeias dogon
e a longa caminhada até casa


Chegámos exaustos, no final do segundo dia de caminhada, à aldeia onde deixei a Miss, voltei a montar a tenda e dormi.
Parti no dia seguinte, deixando Bandiagara para trás, rumo a Djenné, onde comecei a tarde com um encontro muito especial.



Travessia para a Djenné


A história de Djenné está ligada à de outro local mítico no país: Timbuktu.
Entre os séculos XV e XVII, grande parte dos produtos que chegavam e partiam, atravessando o Sahara, tal como o sal, o ouro e, claro, os escravos, passavam em Timbuktu e igualmente por Djenné.
Deste modo, ambas as cidades prosperaram e tornaram-se importantíssimos postos comerciais nesta região.

Tudo tem um fim, e para estas cidades este chegou com a vinda dos portugueses.
Quando o nosso povo estabeleceu vários e importantes postos comerciais ao longo da costa do Atlântico, a rota comercial trans-sahara deixou de ter tanta importância, levando mais tarde as duas cidades à ruína económica.
Porém ficou muita coisa. Djenné é famosa pela arquitectura dos seus edifícios e pela maravilhosa mesquita que alberga: o maior edifício em adobe em todo o mundo, designado Património Mundial pela UNESCO em 1988.    

A cidade está situada a cerca de 400 quilómetros da capital Bamako e a pouco mais de 100 de Bandiagara, através de uma estrada alcatroada.
A lama ficou assim para trás quando sai da vila de Bandiagara e ao início da tarde estava já na barcaça que me levaria até Djenné.
A cidade assenta numa área de cheia, entre os rios Niger e Bani e durante a época de chuva torna-se uma ilha, sendo necessária a tal travessia que demora alguns minutos.
Ao chegar à outra margem, enquanto conduzia pela areia, vi ao longe uma mota, identificando-a de imediato: era a GS do Margus e da Karina, os estónios que conheci em Nairobi, tantos milhares de quilómetros e tanto tempo atrás.
Ali, no centro do Mali, depois de tanto tempo e com rotas algo diferentes, cruzámo-nos novamente.
E que surpresa agradável; além do Olivier, o francês cujo rasto perdi desde o Congo e o Gigi, o italiano que conheci no Burkina Faso, não vira nenhum motard sendo bom sentir-me de novo acompanhado.
Com eles vinha também o Henry, um sul-africano que saiu do seu país para percorrer numa BMW GS650 esta costa de África.

Sabia também que mais à frente (em Bamako) estaria o Martin, um alemão que ainda não conhecia, e que viaja há um ano por África com a sua Yamaha Teneré.
Uns dias mais tarde, iríamos todos ter oportunidade de nos encontrar, uma reunião inesperada e muito interessante, como contarei mais tarde.




Depois de alguns minutos a conversar com o Margus e a Karina separámo-nos; eu entrei na cidade e eles seguiram para Bamako.

Mas voltando a Djenné, que tanto tem para descrever; de notar que eu estava a chegar numa segunda-feira, dia semanal do mercado e véspera do dia que marca o fim do Ramadão, este ano.
Poucas vezes nesta viagem tomei uma decisão mais acertada do que esta: tendo visitado Gorom-Gorom no dia do seu mercado, estava agora, no Mali, num dos mais interessantes mercados daquele país. Ainda mais, iria testemunhar os festejos de uma fase muito importante para os muçulmanos que é o Ramadão, numa cidade totalmente devota ao islamismo.
Melhor não podia ter sido.


Ponto de entrada em Djenné


Sendo Djenné uma das cidades mais antigas e fascinantes de África, o seu mercado um dos mais variados e coloridos da região e tendo a cidade aquela incrível mesquita, poucos sítios seriam mais interessantes para estar como ali.

Além do mercado que me fascinou pela sua variedade de produtos, pessoas de diferentes etnias e em geral por toda a sua cor e cheiros, tive a oportunidade de ser acompanhado nos meus passeios por um jovem rapaz que me guiou através das ruas estreitas e confusas da cidade.
Graças ao estatuto de Património Mundial, em Djenné não existem construções modernas o que posso dizer ser caso raro em África.
Os edifícios têm na sua maioria mais do que um piso, sendo que tradicionalmente o piso superior ficaria destinado aos "senhores" da casa, o piso intermédio aos escravos e o piso inferior para utilização comercial e armazenamento de materiais.
Grande parte das casas mais imponentes pertenceram no passado a importantes comerciantes marroquinos e deste modo, a arquitectura é semelhante à daquele país.

Durante toda a tarde, caminhei pelo mercado, junto à imponente mesquita, e passeei pela restante cidade, suas ruas poeirentas, de nariz tapado (o tratamento do esgoto das casas é um problema na cidade) mas com os olhos bem abertos.
Djenné não engana: é uma cidade 100% islâmica.

Todas as casas de lama são arranjadas todos os anos depois da época das chuvas e até mesmo a grande mesquita, depois de uma parte ter colapsado em 2009, é anualmente arranjada por milhares de voluntários para aquele trabalho.  
Também são diversas as ajudas internacionais que a cidade recebe para manter estes edifícios intactos e apenas o tratamento do seu esgoto continua a não ter grande solução à vista (e ao cheiro).

Em relação à mesquita, esta foi construída em 1907, sendo a sua arquitectura de influência sudanista baseada numa antiga mesquita que existia já no local.
As estacas de madeira que se podem ver, além de ajudarem à parte estrutural do edifício, servem também como escadas para os arranjos frequentes que a mesquita sofre anualmente.
Os não-muçulmanos não são autorizados a entrar na mesquita, como acontece em muitas mesquitas do género em todo o mundo, apesar dessa visita ser abertamente "oferecida" por muitos guias na rua.

No final do dia tive a companhia do meu amigo italiano, o Gigi, que juntamente com outro grupo de italianos estava também a passar uns dias em Djenné. Jantei assim, nessa noite, bem acompanhado.





Pelas ruas da cidade



















Registos do fascinante mercado
semanal na cidade











Pormenores de uma cidade muito especial


O dia seguinte marcou o fim do Ramadão.

Durante os últimos 30 dias todos os muçulmanos (com algumas excepções) jejuaram, sendo esta prática considerada o quarto dos cinco pilares do Islão.

Este importante período tem lugar ao nono mês do calendário islâmico e, uma vez que este é lunar, não é celebrado todos os anos na mesma data.
O jejum é observado durante todo o mês, da alvorada ao pôr-do-sol, aplicando-se também o jejum no que toca a relações sexuais.
Pelas regras, o crente deve não só abster-se dessas práticas como também não pensar nelas e manter-se concentrado nas suas orações e em Deus.
Além da abstinência, todos os maus pensamentos e actos devem ser especialmente evitados neste período (pois...).

Mais ainda:

"O jejuador deve ser indulgente se for insultado ou agredido por alguém, deve evitar todas as obscenidades, ser generoso e aumentar a leitura do Alcorão."

"O jejuador deve abster-se de tudo que vai contra a moral, pois o jejum é visto como uma grande prática de disciplina e da doutrina, tanto espiritual como moral."

"Este período é um tempo de renovação da fé, da prática mais intensa da caridade, e vivência profunda da fraternidade e dos valores da vida familiar. Neste período pede-se ao crente maior proximidade dos valores sagrados, leitura mais assídua do Alcorão, frequência à mesquita, correcção pessoal e auto-domínio."


Além das cinco orações diárias (salá), durante este mês sagrado recita-se uma oração especial chamada Taraweeh (oração nocturna).

Se têm curiosidade sobre como se sobrevive (pelo menos no que toca às refeições) nesta altura, passo a explicar :) :

Antes da alvorada, ainda durante a madrugada, há uma pequena refeição (a que se dá o nome de su-hoor) que substitui o pequeno-almoço habitual.
(Imagino que aqui os muçulmanos aproveitem para comer e beber pois seguem-se horas difíceis...)
O Su-Hoor é considerando uma bênção enviada por Deus, segundo o Alcorão.
No final de cada dia, com o início do crepúsculo é obrigação do muçulmano quebrar o jejum, mesmo antes da oração seguinte:

"Se foi a sede, hidrataram-se as veias, e alcançou-se a recompensa, com a permissão de Deus".


Assim se passam os 30 dias e no final podem imaginar a alegria das pessoas.
Neste caso além de imaginar, testemunhei essa celebração de fé e alegria pois estava lá, à porta da mesquita na última oração do Ramadão, à porta da Grande Mesquita de Djenné.

Enquanto os homens enchiam a grande mesquita, as mulheres (que pelo que me disseram não estavam autorizadas a participar), estavam em casa com a habitual porta de entrada aberta, sentadas na sua entrada, usando um traje de festa a estrear, como manda a tradição.
Todo aquele silêncio era invulgar e nas ruas apenas se viam pequenas crianças a brincar; tudo estava calmo e sereno, ao contrário do dia anterior.




Durante a celebração matinal




No final milhares de pessoas saiam da mesquita.
Vivia-se um ambiente muito especial.


E começou o espectáculo.




Os Conselheiros da cidade (homens místicos) atraíram todas as atenções.
A criançada (e eu) corriam para os ver.


Combinei um encontro com o meu guia do dia anterior para um passeio depois da cerimónia. Combinámos que me levaria a visitar alguns dos seus familiares e amigos naquela ocasião especial.
Como já o disse era um dia extremamente importante para a religião muçulmana sendo tradição que depois da grande cerimónia da manhã, se passe o dia a cumprimentar família, amigos e conhecidos, desejando "que para o ano, estejam de novo todos ali presentes".

Pelo que me disseram os próximos 3 dias seriam de feriado e notava-se uma clara animação em toda a cidade, à moda muçulmana, é claro.
Durante várias horas visitei os parentes, vizinhos e amigos do meu guia, de porta em porta, saudando-nos.

Se o mesmo se passasse em Portugal haveria certamente uma mesa com iguarias e claro, muito vinho, à espera dos visitantes. Não será a crise que fará com que o português perca o dom e o gosto de receber.
Naturalmente que aqui, uma religião e num contexto social (e económico) totalmente diferentes também a maneira de receber difere.
Actualmente, acredito que caminhamos no sentido de uma relação entre religiões mais saudável e o meu exemplo traduz isso de alguma forma: ter sido convidado para estar ali, a partilhar e celebrar aquele momento importante, junto de amigos muçulmanos.
Todos estavam vestidos a rigor para a ocasião, vestindo os melhores trajes. As crianças, claro, pediam ao "homem branco" para tirar uma fotografia.
 









Recordações de uma cidade em festa


Durante o resto da tarde visitámos uma aldeia nos arredores da cidade, na companhia do Gigi e do restante grupo de italianos.
Estando num ambiente que gosto, uma aldeia, aproveitei para tirar umas fotografias e saber um pouco mais sobre o modo de vida daquelas pessoas.

Aquela era uma aldeia do grupo étnico Fula e com um guia consegui saber um pouco mais sobre a cultura e alguns dos seus costumes.

Ainda existem algumas especulações sobre a origem deste povo mas muitos acreditam ser originário do Norte de África, com origem árabe, uma vez que têm a pele mais clara e o cabelo liso. Alguns africanos chamam-lhes mesmo "os brancos".
Ao que parece foram o primeiro grupo no Oeste africano a converterem os restantes ao islamismo através das Jihads, ou guerras-santas, estabelecendo-se nesta região não só como um grupo religioso mas também um forte grupo politico e económico.  
Segundo palavras do guia, são conhecidos por serem muito orgulhoso, auto-intitulando-se de "missionários do Islão", querendo conquistar todo o Oeste africano.
 
Os Fula são fundamentalmente pastores e comerciantes e tive já a oportunidade de os ver em vários locais do Burkina-Faso e Mali, principalmente à beira da estrada, pastando o seu gado.
Como noutros grupos étnicos, o gado para os Fula têm extrema importância, definindo o status social e económico. Vários conflitos com outras etnias são causados, precisamente, por discussões relativas às áreas de pasto para os seus animais. 
 
Outra característica marcante dos Fula, que pude observar nesta aldeia, é a extrema preocupação com a beleza.
As mulheres têm várias tatuagem sendo a que mais as distingue a dos lábios e toda a zona à volta da boca.
Também vi os brincos, lindas peças, que devem fazer inveja a muitas mulheres ocidentais.


Barbeiro/discoteca/espaço de convívio da aldeia
 

A mesquita principal


"Quintal" de uma das casas











Bonita gente, os Fula
No dia seguinte rumei a Oeste, numa longa tirada de quase 500 quilómetros até Bamako onde acabei a tarde reunido com amigos, num encontro totalmente fortuito.
Ali, formámos um grupo de viajantes, todos viajando sozinhos, tendo rotas, tempos de estrada e nacionalidades diferentes, e que em Bamako nos encontrámos no mesmo hotel (seria por ser o mais barato e dos únicos que permite acampar?!), trocando experiências e estórias entre muitas cervejas.
Depois de muitos milhares de quilómetros, de muitas aventuras e algumas desventuras todos tínhamos o mesmo sentimento: ninguém se mostrava indiferente a África.


Foto da família viajante em Bamako: um encontro casual e muito divertido.
Três motards a viajarem para sul, cinco a viajarem para norte. Todos com um sorriso nos lábios.
Da direita para a esquerda: Henry (África-do-sul), Karina e Margus (Estónia), Jean-Louis (França), Hubert (França), Julien (França), eu (representando a Tuga) e o Martin (Alemanha).



Acabei assim por passar alguns dias em Bamako, mesmo cheio de calor, uma humidade intensa e com verdadeiros enxames de mosquitos esfomeados.
Afinal Bamako é uma das capitais mundiais da música, onde diariamente nomes importantes do ritmo africano dão os seus concertos.

A cidade está situada nas margens do rio Níger, no sudoeste do país e estima-se que seja das cidades com maior taxa de crescimento em África.
O nome Bamako vem da palavra bambara que significa "rio crocodilo".
Este foi um centro muçulmano importante na Idade Média, sendo ocupado pelos franceses em 1883, tornando-se a capital do Sudão Francês em 1908.

Entre conversas com os meus companheiros de estrada, picadas de mosquito e o regresso às noites de tenda (das quais não guardava qualquer saudade), lembro de Bamako os concertos de fim de noite e o meu deslumbramento com um instrumento especial: a Kora.

A Kora é um instrumento de 21 cordas, metade tocadas com a mão direita e a outra metade com a esquerda.
Pormenores à parte é dos sons mais encantadores que já ouvi ao vivo e algo que não deixa ninguém indiferente.
Gostando eu de música africana, em Bamako estava no meu ambiente. Este é um país com música diversificada, onde se vive esta cultura como em poucos locais em África, existindo diversos géneros desde o famoso guitarrista Ali Farka Toure, ao extraordinário Salif Keita, Oumou Sangaré, entre outros.

Depois de tanta fotografia, deixo-vos com os sons de um dos meus artistas preferidos: Ablaye Cissoko, um senegalês, que me encantou com a sua Kora.

Ah, é verdade, foi ao som deste instrumento, num espaço conhecido pelos grandes espectáculos de música ao vivo, que festejei mais um aniversário.
Melhor mesmo, só se fosse na companhia da família e amigos.




Dias depois, segui para o Senegal, fazendo "escala" em Kayes, cidade perto da fronteira, onde recordarei para sempre a temperatura que estava no quarto durante a noite (acima de 40ºC), o que me obrigou a montar a tenda à porta para conseguir dormir.

Já com 31 anos, entrei no Senegal sem qualquer problema nem qualquer estórias da entrada para vos contar: tudo demasiado fácil e simples.


Em Kayes, acampado à porta do quarto


A Miss, essa, não deu origens a grandes comentários neste post do Mali... :)
Para aqueles que ainda pensam que não chegaremos juntos a rolar, estrada fora, até Portugal aconselho-vos a  pensar novamente.

2 comentários:

  1. Fantástico, "as usual" cada vez mais "didático", adorei esta crónica, para mim a mais rica culturalmente até agora,deixa-nos com vontade de aí estar. Uma sugestão,enquanto "caminhas" vai pensando em compilar tudo isto, dará uma crónica fantástica, parabéns (começa pelo livro, a arvore e o filho virá com o tempo lol). Quanto ás dificuldades ..... já me preocupei mais, percebi que nada te vai impedir de cruzar a "Vasco da Gama" dentro de momentos. Abração

    PS- muitos parabéns pelos 31

    Rui Forjaz

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  2. Devoro os teus relatos sempre!!!!

    tens aqui uma enorme fã :-)

    até estou com pena que estejas de regresso .. isto é um vício, viajar frente ao PC e sonhar em fazer o mesmo um dia ...

    Gonçalo, encontramo-nos daqui a pouco tempo .... no sítio do costume

    Vem devagar ;-)

    Paula Kota

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