segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Nigéria, "My darling"

 
Estava finalmente na Nigéria, do outro lado da ponte entre este país e os Camarões. "Apenas" o facto de ter o visto fora de validade me impedia de passar o portão e rolar pelo asfalto país adentro.

O chefe da migração, um homem magro de meia idade, que insista em me tratar de "my darling" (pelo que vi mais tarde, é usual usarem essa carinhosa expressão) disse-me para aguardar.
As horas foram passando, sem que eu conseguisse ver qualquer solução que resolvesse aquela embrulhada e, um pouco mais tarde, o chefe voltou a chamar-me à sua sala, um pequeno compartimento em madeira com uma mesa e duas cadeiras. Depois de me dizer que "a coisa" iria ser resolvida, faltando apenas chegar um dos seus funcionários para dar "seguimento do processo", relaxei e senti finalmente que as coisas acabariam por se resolver.

Acabei por ficar toda a tarde na companhia dos guardas que controlam o trânsito de pessoas e mercadorias naquela fronteira, tornando-me um amigo.
Fiquei impressionado pela forma amigável com que me trataram, perguntando-me frequentemente se estava bem, se precisava de comida e água.
O tempo deu para conversar bastante, partilhando comida (espetadas de frango e pedaços de cabrito assado), cerveja e claro, falar de futebol.

Já ao início da noite, sete ou oito horas depois de ter chegado ali fui chamado uma vez mais à "sala do chefe" onde já se encontrava o colega que iria tratar da situação.

- "O passaporte terá de ir até aos Camarões onde eles terão de alterar a data de saída do país. Nós aqui vamos pôr o carimbo de entrada de forma ao visto ser válido. Tudo isto tem um preço e lá nos Camarões eles pedem muito dinheiro. É um grande risco que correm e querem 400 para tratarem disso.", diz-me o chefe com ar muito sério.

Confesso que não estava à espera de uma quantia dessas e quando ele me disse 400 eu perguntei-me se seriam dólares ou se seria moeda local e as minha pernas fraquejaram.
Mas rapidamente percebi que ele falava de dólares e engoli em seco.

- "Entendo a situação, mas isso é muito dinheiro para mim. Eu não tenho essa quantia."- disse-lhe.

E claro, "o jogo" habitual de palavras, olhares sérios, insinuações e muito "bluff", normal nestas ocasiões, começou: o colega "mau" saiu da sala a dizer que se ia embora, bastante chateado e o "bom" chefe disse-me que nada mais podia fazer e por aí adiante.
 
Já passei por muitas situações deste tipo (mais do que queria) e tentei sentir até onde podia descer o valor. Finalmente, exausto, concordámos ficar pelos 300 USD e paguei.

Este foi um valor elevado mas relativo, tendo em conta que se optasse por outra via teria de pagar outro visto (130 USD) na embaixada dos Camarões, com muita papelada à mistura, fazer mais de 600 quilómetros pelo mesmo caminho, atravessar novamente uma das partes mais difíceis desta região e isso só depois de tentar reentrar nos Camarões com o carimbo de saída estampado, o que também me custaria dinheiro.
Pagaria 600 USD para evitar tudo aquilo.

Deste modo paguei o valor pretendido (que se destinava segundo o chefe "my darling" exclusivamente para "os amigos muito caros dos Camarões") e poucas horas depois apareceu o senhor com o meu passaporte.
Tinham simplesmente alterado a data de entrada nos Camarões e a data de saída. Uma simples caneta fez o serviço de rasurar as datas e deixar tudo "legal".
O passaporte foi carimbado depois com a entrada na Nigéria.
Estava deste modo há três semanas na Nigéria, ficando apenas com mais uma sair do país.
Ainda tive mais de uma hora a convencer o departamento da alfândega a colocar a data de entrada da mota no país igual à da minha entrada, pois poderia ter problemas futuros, como é óbvio. Mais uma vez o jogo do "eu ajudo-te a ti se tu me ajudares a mim" mas desta vez, cansado e sem dinheiro convenci o responsável a ajudar-me sem "gasosas" envolvidas.

Eram onze da noite e aquele foi o dia mais cansativo que tive nesta viagem; o dia em que enfrentei os arrasadores 60 quilómetros da Mamfé-Road sob uma chuva torrencial, quedas e muita lama, para logo de seguida esperar 9 horas sentado num banco de madeira, junto da ponte que separa os dois países.

Foi-me oferecido um local para dormir junto das instalações onde ficam os guardas e arrastei-me até lá onde montei a tenda.
Pouco depois, no momento em que preparava para me deixar cair e descansar, sem tirar a roupa que trazia no corpo, uma comitiva com o grande responsável daquela fronteira, superior do chefe "my darling", apareceu e perguntou-me o que estava ali a fazer. No total seriam aí uns cinco elementos e quem falou foi o superior:

- "Tu não podes dormir aí. Mas o que vem a ser isso?! Dormir no chão??? Mas porquê, se nós temos espaço no interior das casas onde podes ficar?"

- "Sim, foi-me oferecido abrigo, mas eu tenho tenda, costumo passar assim as minha noites. Estou bem, só quero descansar.". - disse-lhes.

- "Não, isso não pode ser de maneira nenhuma? Assim dormem os animais. Que pessoas seriamos nós se te deixássemos dormir aí? Quem autorizou que ele dormisse assim?!" - perguntou indignado para os restantes.

Eu sinceramente estava a dormir em pé. Só me faltava mesmo isto, pensei. Só me apetecia gritar e dizer: "Epá, bazem. Por favor, eu só quero dormir sossegado."

Mas não o fiz e a novela continuou.

- "Tu aí não vais dormir. Se queres dormir na tenda sais das nossas instalações. Aqui ficas num dos quartos, quente e seco. Aqui serás bem tratado." - disse o chefe.

Sem mais argumentos, vi que o melhor seria aceitar depressa o convite e assim fui colocado, com todo o aparato, na sala da casa do chefe superior onde um colchão no chão com uma almofada já esperava por mim.
Nem mesmo o gerador, a poucos metros da casa, a funcionar com o ruído de um pequeno avião, me impediu de adormecer logo que caí na cama.

A tenda foi montada na fronteira mas acabei por não dormir nela  
 
 
Bem cedo, depois de dormir poucas horas, fui acordado pelo chefe "my darling" que me disse que teria de sair pois, segundo ele, " a viagem para Abuja é longa e demorada".
Assim, rapidamente arrumei a tenda no saco, lavei a cara e segui para Norte pela estrada asfaltada com um Jeep a fazer de escolta, nos primeiros trinta quilómetros, já que um dos guardas insistiu em seguir comigo, não por uma questão de segurança mas porque achava que seria mais rápido para mim passar sem parar nos postos policiais e militares, existentes ao longo da estrada.

Na Nigéria existem milhares de postos de controlo ao longo da estrada. Quase todas as vilas têm à sua entrada um posto destes, controlados por militares, pela polícia e por milícia.
Perguntam o destino, a origem e o motivo da viagem e deixam depois seguir caminho.
No meu caso mais de metade pedia para parar apenas para ver a Miss, perguntar qual era a velocidade máxima e para me dizerem que gostavam que eu um dia, acabando a viagem, lhes oferecesse a mota.

Um sorriso aberto, um "good morning" sonoro e alegre baixava imeditamente o ar sério com que os militares e a polícia, muitos de arma em punho (com a pistola na mão a fazer de placa de stop) faziam as suas paragens.

O diálogo depois de acenarem a pistola para me fazerem parar (além da tábua cravada de pregos que era imediatamente colocada para bloquear a estrada), era qualquer coisa do tipo:

- "Good moooorning my friend", dizia logo eu para aliviar tensões.

- "Hello. How are you? Where you are coming from? Going where?" - perguntavam enquanto observavam muito atentos a Miss.

- "Going to Abuja from the border. Is this the road to Abuja?!" - perguntava sempre pois para além de ser útil uma confirmação que aquela é a estrada que pretendemos seguir, a satisfação que esses homens sentem em dar uma indicação, sentirem-se valorizados e úteis, principalmente aos olhos de um estrangeiro, os deixa com o seu ego cheio e rapidamente esquecem outro tipo coisas.

Apesar de ter parado dezenas de vezes durante a minha travessia do país em postos deste tipo, nunca tive qualquer problema.
Estes bloqueios, muitas vezes criticados pelos estrangeiros que por aqui passam, transmitiram-me na verdade alguma segurança, nesta que é uma das mais conturbadas regiões em África.

No final do primeiro dia, depois de muitas horas de condução cheguei a Abuja, a capital "feita à medida" da Nigéria, no centro do país.

Durante muito tempo ouvi comentários de viajantes que encontrava pelo caminho, recordando com saudade a estadia naquela cidade.
Um "Oásis" naquela região; para alguns o único duche de água quente em vários meses, a oportunidade ideal para descansar, tomar banho de piscina, comer em bons restaurantes e tudo aquilo ali, no mesmo sítio.
Não falavam de Abuja, uma capital "inventada" nos anos setenta, retirando o estatuto a Lagos, maioritariamente cristã, para fundar uma capital etnicamente neutra.
O Oásis da cidade está sim no hotel Sheraton, no centro de Abuja.
 
Pertencente à cadeia de hotéis de cinco estrelas conhecida em todo o mundo, ali numa das cidades mais caras de África, pode-se ficar no Sheraton por menos de 3 euros.
É certo que em vez dos quartos espaçosos e limpos se fica a acampar, com a tenda que cada um carrega, mas ainda assim as instalações estão lá. Tudo bem que a zona para acampar fica num jardim colado ao canil do hotel, a casa de banho "emprestada" é a dos courts de Squash e a piscina e outros serviços reservados aos quartos têm de ser pagos à parte mas ali fica-se em segurança, sem confusão, apreciando a magnífica piscina, bares e os restaurantes do hotel.
Mas a verdade é que quem anda a viajar quase nunca tem dinheiro para luxos e os restaurantes, bares e lojas do hotel ficam apenas para apreciar...ao longe.
Ainda assim, depois do cansaço acumulado dos últimos dias, depois do banho quente (o primeiro desde há muitos meses) ofereci-me um jantar buffet no melhor restaurante.
Depois do repasto,  "desci à terra" e  dirigi-me para os jardins nas traseiras, perto do canil, onde entrei na minha tenda e adormeci facilmente.
Já no dia dia seguinte comprei o acesso à piscina e por ali fiquei todo o dia, entre águas tónicas e amendoins. Como diz um amigo meu: "já que tá, tá...", e assim aproveitei.





Estadia no Sheraton, em Abuja


Aproveitei também os dias que passei na cidade para tratar de vistos dos próximos países, arranjar as malas metálicas da mota (completamente empenadas devido às muitas quedas nos Camarões), lavar a roupa, descansar e actualizar o blog.
Limpa e sossegada, Abuja não parece uma cidade em África.
Não há rigorosamente nada para fazer mas é um grande sítio para recuperar de uma longa jornada, retemperar forças e tirar vistos.
Assim fiz e passado dois dias tinha já o visto para o Burkina Faso e para o Mali. Foi-me prometido o visto para o Niger mas passados dois dias ainda não o tinha e então alterei os planos e decidi rumar ao Benin, Togo e passar pelo Gana.

A escolher a rota a seguir


Jardins do Sheraton


Segurança apertada no hotel


Vista sobre Abuja com destaque para a mesquita, a igreja e o Sheraton


Placa de matrícula dos carros em Abuja



As refeições ajustadas à minha carteira


Com menos de dois dias para permanecer no país, depois do meu episódio na fronteira, tinha de me despachar e sai de Abuja em direcção ao Benin.
As estradas na Nigéria não são do pior que encontrei na viagem: são asfaltadas na sua maioria mas com muitos buracos o que torna a condução perigosa e cansativa.

Mas muito pior do que a estrada é a condução dos nigerianos que ao tentarem evitar os buracos conduzem de qualquer maneira, empurrando tudo e todos para fora da estrada e são realmente um perigo mortal naquele país.

A Nigéria entrou assim para líder destacado da minha lista de pior condução em África (superando o Quénia e os Camarões).
Milhares e milhares de camiões, estradas perigosas, carros velhos e mentalidade agressiva dos condutores (que contrasta com a simpatia única dos nigerianos quando não estão a conduzir) fazem-me temer muito mais a condução naquele país do que os raptos e a sua elevada criminalidade e corrupção.


Sorry Baby...



Estrada alternativa (um erro no GPS e fui parar aqui...)

Mas pouco depois estava aqui...



Curiosidade e simpatia em todos os nigerianos que encontrei


No final de dois dias de viagem, depois de mais de cinquenta postos de controle e de percorrer quase mil quilómetros estava a sair do país por uma fronteira secundária.

A Nigéria não é nada daquilo do que se imagina.
É verdade que tem corrupção, violência étnica, graves problemas de segurança e parece ser mais um país a evitar do que um para viajar.
Ainda assim, para quem tiver a sorte de o visitar, poder sair das cidades e lidar com a sua gente simples e honesta é algo que marca para sempre.
Não é um país fácil para viajar mas a gentileza da sua gente faz esquecer as coisas menos boas; podem ter a certeza que se vão sentir bem-vindos.
Eu senti-me assim, e mesmo sem seguro de repatriamento e sem seguir as indicações das embaixadas europeias (que desaconselham qualquer visita aquele país), sobrevivi à Nigéria e gostei.
Sai da Nigéria depois de ter recusado uma proposta de casamento de uma das guardas da migração e ficar por lá.

Entrei no Benin, o berço da religião Voodoo, um país com uma história rica e interessante.




Nigéria: um país tentando ser uma grande nação

4 comentários:

  1. Gonçalo,
    grande relato o teu que acompanho regularmente. mais umas semanas e estás a rolar na guiné..senegal..mauritânia. depois é sempre em frente! desejo-te toda a força para continuares essa subida maravilhosa.
    um abraço de Luanda
    andré policiano

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  2. Oi Gonçalo

    Já estava a "estranhar" a falta de noticias,mas vi que tudo rola bem,fico contente por ti. A Nigéria era a meu ver (mero pressentimento) um dos sitios em que temia pela tua segurança,o proximo será talvez a Mauritânia não? mas também já percebi que a tua "calma" os desarma de modo que mal nenhum te vai empatar o caminho para o "Puto" espero. Um grande abraço de mais um torcedor, Portugal é já ali ;-))
    Rui Forjaz

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  3. Companheiro,
    vais-nos trazendo testemunhos muito interessantes desta mesma África mas de tão diferentes países/culturas!

    E sim...era de esperar mais complicações na "temível Nigéria"...mas Às vezes esperando o o pior resulta melhor! ;)

    Punho na miss e rumo ao objectivo...

    Grande ABRAÇO

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  4. O caminho que muitos não recomendam sempre tem faces que o fazem valer a pena =)

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