terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Pela costa do Quénia: de Mombassa a Lamu

 
Quase 500 quilómetros separam a capital do Quénia da sua costa. Dos 1700 metros de altitude em que Nairóbi se encontra descemos ao longo de uma estrada que se estende até ao nível do mar, atravessando parques naturais repletos de vida selvagem: zebras, girafas, elefantes e muitas impalas são alguns dos animais que se podem ver sem ser preciso sequer entrar savana adentro, ali mesmo, junto ao asfalto.

Apesar de ter passado alguns dias em Nairóbi, a capital do Quénia, pouca atenção dei à cidade, tendo-me deixado ficar alojado a uma dezena de quilómetros do centro, longe da confusão e barulho próprio de uma das maiores cidades de África.

Nairóbi, com cerca de 3 milhões de habitantes, já foi conhecida como a cidade do crime, "Nairobbery". Tal como Joanesburgo na África do Sul ou Lagos na Nigéria, a fama desta cidade não é boa. Crimes violentos são comuns, apesar de nos últimos anos as coisas parecerem estar a abrandar.

A população da cidade  é composta de várias etnias negras e minorias de origem inglesa e indiana e uma percentagem, de uns incríveis 30% mora na Favela Kibera, uma das maiores da África.

Muitas vezes no combate ao crime está a ser usada violência extrema e assassinatos.
Como acontece em algumas cidades do Brasil, de Angola e de outros países, para eliminar eventuais criminosos recorre-se à força, através de esquadrões policiais/militares (os chamados "esquadrões da morte"), eliminando todos os que são considerados "inimigos da sociedade". Este extermínio acontece com o conhecimento e autorização dos governos destes países.
Também em Nairóbi acontecem frequentemente crimes destes.

Enquanto estive na cidade uma das coisas que mais me impressionou foi o jornal mais conhecido da cidade ter publicado fotografias registadas por um motorista anónimo da execução de três pessoas, alegados criminosos, numa das ruas mais movimentadas da cidade, a meio da manhã de um dia de semana.
Contava o jornal que um grupo vestindo à civil atravessou o seu carro no meio da estrada fazendo parar o que seguia atrás, ordenando a que todos saíssem de dentro dele. Depois de os indivíduos terem obedecido e se terem deitado na estrada, com as mãos na cabeça como lhes foi ordenado foram executados.
As fotografias mostravam a execução destas três pessoas sob o olhar estupefacto da população que ia passando no local.
No dia seguinte na televisão pública aparecia o chefe da policia dizendo que "só com o uso da força poderia ser solucionado o problema da criminalidade no Quénia" e que também os elementos da policia eram frequentemente feridos ou mortos por criminosos. Coisas do Quénia, coisas de África e, infelizmente, coisas que ainda se vão passando pelo Mundo.

Também eu fui alvo de um grupo de criminosos. Enquanto a mota estava na revisão aproveitei para ir tratar de uns assuntos ao centro da cidade e apanhei um matatu (nome dado aos táxis comuns, semelhantes aos candongueiros em Angola). Confesso que facilitei e coloquei a carteira num dos bolsos laterais dos calções. Ao sair do matatu percebi que já não tinha a carteira, tentando ainda, através de uma perseguição digna de um filme de Hollywood, caçar os bandidos.
Depois de ter bloqueado o matatu com um carro em que seguia mais atrás vi que os gatunos tinham saído instantes antes.

Para concluir: perdi algum dinheiro e o cartão Visa. Salvaram-se todos os documentos que tinha comigo numa outra bolsa, presa à cintura, esses bem mais valiosos que o dinheiro que trazia.
Tal podia ter acontecido em qualquer transporte público em Portugal. O facto de aqui estar sozinho e ter documentos importantes comigo, sem os quais não posso prosseguir viagem, torna-me mais vulnerável e este caso ajudou a que permaneça mais atento a este tipo de situações.

Adiante, segui como previsto para Mombaça: a segunda maior cidade do Quénia, junto ao Oceano Índico e que alberga o maior e mais importante portos marítimos do Este de África.

Mombaça sempre desempenhou um papel fulcral nesta parte do continente. Primeiro foram os árabes que aí prosperaram até ao século XIV, antes da chegada dos portugueses, no ano de 1505, liderados por D. Francisco de Almeida.
Como era hábito naquele tempo, dotados de uma grande armada e de armas em riste o nosso povo saqueou, matou e destruiu o que ali existia.
Mais tarde já com Nunes da Cunha , os portugueses capturam a cidade, arrasando-a e rumando de seguida para a Índia.
Em 1593, Portugal pretendendo fazer desta cidade um porto comercial na rota para a Índia, construiu o Forte de Jesus, uma bela construção em pedra de coral.
Durante os séculos XVII e XVIII a cidade mudou algumas vezes de mãos e em 1729 os portugueses abandonaram-na, abdicando do domínio daquela parte da costa de África.
Depois foram os Sultões de Õman a terem o poder da cidade e só em 1870, depois da intervenção para a causa  Antiesclavagista, esta foi perdida para os Ingleses.
Com o seu porto marítimo e uma ligação ferroviária até ao Uganda, Mombaça tornou-se a mais importante cidade africana para os britânicos.
E assim foi feita a história desta cidade.


Na minha opinião Mombaça assemelha-se muito a uma cidade da Índia: quente, húmida, movimentada, suja, com cheiro a cabra e especiarias, fumo de carros, milhares de tuk-tuk e pequenos autocarros coloridos. A população é uma mistura de muçulmanos, suaílis e indianos: as mulheres trajam vestimentas coloridas de nome kanga (suaili) e outras cobrem-se completamente de um manto negro conhecido como bui-bui (muçulmanas), enquanto que os homens vestem sarong de cores claras.
Corvos, milhares deles, esvoaçam pela cidade procurando o seu lixo e tudo faz lembrar Deli ou Calcutá; apenas não encontro tantas vacas por aqui.

Também os costumes, os avisos para manter uma "postura de decência" em locais públicos (e de família) fazem lembrar a tradicional e conservadora Índia.
Porém à noite, numa discoteca conhecida da cidade, a decência é deixada à porta e acredito que neste aspecto possa facilmente comparar o ambiente com um dos muitos que encontrei em Banguequoque ou em Maputo...:)



A cidade de Mombaça nos dias de hoje


Um aviso para manter a "decência" em espaços públicos e "de família"










Forte Jesus, uma herança deixada pelo povo português



Parte antiga da cidade de Mombaça


Antes de seguir para Norte inverti rota em direcção a Diani e Tiwi, duas conhecidas estâncias balneares no sul, a poucos quilómetros de Mombaça.
Uns dias aqui, nas águas mornas e transparentes do Índico fazem esquecer tudo. E foi o que fiz: deixei-me entregue a dias de relaxe e de sol, banhando-me durante largas horas nas águas "terapêuticas" daquele mar. Comecei assim a despedir-me do Índico, do mar mais incrível que vi nos dias da minha vida.








Praias de Diani e Tiwi: areia branca, mar transparente, vendedores masai e muitos camelos


Uns dias depois segui para Norte, ao longo da costa, para a cidade de Malindi.
O turismo é a maior indústria desta pequena cidade com sotaque italiano. Este lugar é extremamente popular entre os italianos e imagino muito bem os folhetos de propaganda de Malindi, espalhados por todas as agências de viagem em Itália.
É facto que tem um bonito parque marítimo com bonitos corais e vida marinha mas não gostei especialmente do sítio: caro, repleto de restaurantes italianos (sim porque os turistas italianos gostam de se sentir no seu país, comendo apenas comida italiana e bebendo apenas vinho italiano...) e repleto de grandes resorts, um pouco desadequado para aquele local.

No meio de tanto italiano (todos os nomes de hotéis, restaurantes e algumas das ilhas que existem ao largo de Malindi são italianos) lá vi ao longe (porque de perto teria de pagar um valor que considerei exagerado) o pilar do Vasco da Gama.
 Os portugueses, liderados por Vasco da Gama, estiverem em Malindi em 1498, assinando um acordo comercial e contratando um guia para a viagem até à Índia. Ali foi construído um pilar para assinalar essa data, estando Malindi assim ligada ao início da Era dos exploradores.
Em 1499 os portugueses estabelecerem na cidade um posto de troca com o Oriente e transformaram Malindi num ponto de paragem e descanso na rota da Índia. Também foi construído no local uma igreja, presumivelmente por Vasco da Gama, passando por ali figuras conhecidas da Coroa Portuguesa como São Francisco Xavier no seu caminho para a Índia. 


Pilar construído em Malindi pela armada de Vasco da Gama rumo à Índia


A poucas centenas de quilómetros a norte de Malindi encontra-se a ilha de Lamu: o meu destino final na costa queniana e a minha despedida do Índico e do mar durante os próximos meses. Depois de Lamu e do seu mar, será tempo para os lagos. Mas uma coisa cada vez.

Através de uma "estrada" pavorosa, de gravilha repleta de lombas, buracos e ressaltos capazes de fazer voar grande parte dos parafusos da mota e partir a suspensão, arruinado a viagem, fui andando pole-pole (devagar, devagarinho, como se diz por aqui) chegando cansado ao lugar onde teria de apanhar o barco até Lamu.
A África foi guardada nessa aldeia tendo direito a um guarda privativo durante os dias em que permaneci na ilha.

Cheguei a Lamu a bordo de um pequeno barco, apinhado de gente local, carregado de fruta e água, com uma sufocante névoa de fumo em consequência do motor e do seu escape estarem colocados no seu interior.
Chegar a uma cidade vindo do mar costuma ter um efeito mágico e desta vez não foi diferente. Lamu é de facto especial: pequenos espaços de comércio local, mesquitas e casa de arquitectura suaíli, construídas de coral, enfeitam a paisagem junto à pequena "marginal".
Ao longo da areia barcos tradicionais (dhow´s) enchem a praia esperando passageiros e carga, enquanto as mulheres cobertas com os véus (bui-bui) atravessam as ruas apressadas, homens arranjam os seus barcos, crianças brincam e burros passam.

Os burros, andando soltos, trabalhando ou levando gente são uma marca característica deste local. De facto em Lamu existe um santuário para burros, havendo cerca de 3000 animais nesta pequena ilha. Podem imaginar que em todas as esquinas (e há muitas esquinas nas ruas labirínticas da cidade) se vê um deste animais. 







Lamu e seus burros


A ilha de Lamu faz parte do arquipélago com o mesmo nome no norte do Quénia.
A cidade, a mais antiga do Quénia, foi em tempos a mais importante povoação suaili ao longo da costa Este africana e o seu porto existe há mais de um milhar de anos.

A parte velha da cidade, onde fiquei alojado, contém belos exemplos da arquitectura suaili, com casas de vários andares feitas  de coral com o ultimo piso, normalmente aberto em varanda tendo uma paisagem incrível para o resto da cidade e para o mar.
A cidade velha faz parte da lista das locais UNESCO e um dos locais com arquitectura suaili melhor preservada nos nossos dias.
Devido às ruas serem extremamente estreitas os automóveis não são permitidos o que torna a ilha só possível de ser explorada a pé, de bicicleta ou de burro. Escolhi, como é óbvio, os meus pés para me levarem para onde queria.

Uma vez que foi em tempos um dos centros da rota de escravos, a população de Lamu é etnicamente muito diversa, mas a maioria é muçulmana.

Também este local foi marcado pelo povo português. Com o objectivo de controlar a rota comercial desta parte de África os portugueses invadiram o local em 1506 e durante largos anos tiveram o controlo das trocas ao longo do oceano, impondo impostos a outras embarcações que utilizam esta rota. 
Em 1652, Lamu e o império Õman acabou com o controlo português, tornando-se um protectorado Õman, período em que a cidade prosperou.O seu declínio começou com o fim do comércio de escravos.

Passei, assim, alguns dias a passear nas ruas repletas de história,  mergulhando nas suas belas praias, visitando os seus mercados, deixando-me estar numa esplanada a ver a vida passar.












Cenas do quotidiano na pequena Ilha de Lamu








Fabulosos mercados encontrei nesta ilha




As crianças e os burros



O cinema na ilha onde prometem reparar corações partidos...








A marginal e Lamu vista do mar. Mágico não é?!


Teria ainda de fazer o mesmo trajecto para regressar a Nairóbi o que me deixava vontade de ali ficar.
Porém uns dias depois sai da ilha e segui o caminho de volta até à capital.

Cheguei a Nairóbi com o quadro da mota fissurado e com três raios da roda traseira partidos o que me obrigou a por lá ficar mais uma semana, reparando os estragos que aquela estrada para Lamu tinha provocado.
No entanto valeu a pena, sem qualquer dúvida, os mais de 2000 quilómetros de viagem até Lamu e regresso e os estragos na mota.

No dia em que cheguei a Nairobi fui, uma vez mais colocar a mota na oficina (a primeira tinha sido para uma revisão geral) e comprei numa loja local um autocolante que coloquei numa das malas laterais. 

"NO HURRY IN AFRICA" (não há pressa em África). Aqui não é mesmo um sítio para pressas, pois não?!

Na semana que estive sem mota tive tempo para amadurecer a ideia de ir até ao Lago Turkana, no Norte do Quénia. Para a margem Este do lago é preciso enfrentar aquela que é uma das estradas mais conhecidas entre os viajantes.
Talvez a pior estrada de África esses 300 quilómetros são capazes de partir os melhores amortecedores e arruinar a viagem dos mais bem preparados land-cruiser´s do mundo...

Tinha mesmo de ir até lá, e fui...

2 comentários:

  1. ótimo texto. Fotos muito boas. Parabéns pelo blog e pelas viagens. A Africa é realmente linda.

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  2. Olá, Gonçalo

    Obrigada por compartilhar a sua viagem e imagens com a gente, adorei as fotos, principalmente as de Lamu. Estou planejando ir pra lá no mês que vem. Já estou contando os dias. Abraço!

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