domingo, 29 de maio de 2011

De volta a Angola (passando pela Namíbia)

Estava uma vez mais na Namíbia, um país que tantas saudades me tinha deixado. Poucos foram os países em que tive tanto prazer de cruzar e percorrer as suas rectas a perder de vista como este.

Saindo do Botswana e entrando na Namíbia, em plena região do Kalahari, a paisagem pouco ou nada se altera.
Vistas bem as coisas a divisão deste países, como muitos outros neste continente, foi feita a régua e esquadro por europeus, sem qualquer respeito pelas consequências causadas. E ao aproximar-me da Namíbia percorri paralelamente essa "linha" recta durante dezenas de quilómetros até entrar finalmente neste país.


Uma vez mais: Namíbia


Trans-Kalahari Highway até Windhoek


Em direcção a Windhoek, numa das rectas de muitos quilómetros, apanhei uma das maiores chuvadas que tenho memória.
Nada havia para nos abrigar, a mim e ao Jami e a certo momento, completamente encharcados, encostados na berma da estrada, nada mais pudemos fazer do que esperar até a chuva deixar de cair.

No final da tarde chegámos a uma pequena cidade, a pouco mais de duzentos quilómetros da capital, onde resolvemos acampar.
O mesmo ritual das outras noites manteve-se: tendas montadas, banho quente tomado e uma boa garrafa de vinho tinto (uma para cada um) para acabar o dia.

No final da manhã seguinte chegámos a Windhoek onde nos alojámos num backpaker conhecido.
Os restantes dias foram passados a passear pela cidade aproveitando os seus bons restaurantes e esplanadas.

O combinado com o Jami, o finlandês que tinha partido do seu pais na sua Yamaha Teneré, 6 meses atrás e que terminaria a sua viagem na Cidade-do-Cabo, era que tentaríamos fazer juntos a costa Oeste da Namíbia até à fronteira com Angola, descendo depois o Jami para Sul e rumando eu para Angola.
A ideia, pelo menos,  era essa. Porém chegados a Windhoek falámos com algumas pessoas vindo dessa região, que nos informaram que o estado das estradas, todas elas de gravilha, era péssimo. A época de chuva torrencial transformava algumas dessas estradas em autênticos rios e a passagem de cursos de água em alguns dos troços impedia qualquer progressão.

A decisão estava tomada. Já tinha tido alguns problemas mecânicos na Miss e sinceramente estava cansado de rebocar a mota. Queria descanso, queria facilidade e alcatrão. Queria chegar a Angola, país que me é familiar, falar português, descansar e acabar a primeira parte da viagem.

Despedi-me do finlandês e fiz-me à estrada. Optei pelo percurso que tinha seguido em direcção contrária, quase 8 meses antes, quando desci de Angola. Setecentos e cinquenta quilómetros até à fronteira de Santa Clara, em estrada asfaltada, era o que tinha pela frente. Viajava de novo sozinho e sentia-me muito bem.

Apenas o facto de ter o dinheiro contado para chegar a Luanda me limitava. O cartão Visa não funcionava desde há algum tempo e tinha pouco dinheiro, apenas o suficiente para, se tudo corresse bem, chegar ao meu destino.
A verdade é que uma vez mais cometi um erro, a que posso juntar à lista dos cometidos ao longo dos últimos meses, e que era não ter qualquer reserva de dinheiro comigo.
 
E assim, depois de uma boa centena de quilómetros, com pneus novos comprados em Windhoek e com a Miss Africa a rolar suavemente, tive um encontro que acabaria por mudar a forma (e o final) da viagem até Luanda.



Brinquedo artesanal made in Namíbia


O Olivier é um francês que tem trabalhado nos últimos anos na ilha de Santa Helena, uma pequena colónia britânica no meio do Oceano Atlântico.

Quando o conheci, a caminho da fronteira com Angola, estava parado na beira da estrada a colocar óleo no motor da sua velhinha Honda Transalp.
Tenciona chegar a França naquela mota, o que com a fuga crónica de óleo que tem no motor, será um arriscado feito e uma grande aventura.

Encontrar alguém na estrada a viajar rumo à Europa é coisa rara nesta costa de África. Deste modo, juntei-me ao Olivier e à sua "rat-bike", e mesmo gostando de viajar sozinho e ao meu ritmo, decidi acompanhar aquele francês até Angola.

Contudo, a diferença dos ritmos de condução era abismal. Em rectas de alcatrão costumo rodar o punho até aos 140km/h e manter-me por lá.
Porém, o Olivier e sua Honda com motor cansado não passa dos 100.
Ao final de umas horas de condução na sua companhia sentia-me cansado e aborrecido com aquele tipo de condução. Além do mais tinha planos de chegar à fronteira e entrar em Angola naquele dia.
Acompanhando o Olivier durante a tarde não foi possível cumprir o que tinha planeado inicialmente e, mesmo tendo puxado a Transalp bastante nos últimos quilómetros, chegámos tarde à fronteira.
 
Nada mais havia a fazer naquele dia: não tínhamos conseguido passar para Angola e ficámos a dormir numa (espelunca) residencial em Santa Clara.

Angola estava mesmo ali e apesar de ainda estar em território namibiano, a sua (má) influência já se fazia sentir : preços exorbitantes e confusão.
 
Sessenta dólares por um quarto sem casa-de-banho, sujo e cheio de mosquitos, vinte dólares por um prato de funge e frango e uns tantos por uma cerveja: gastei mais naquela noite do que me lembro gastar numa semana em alguns dos países que atravessei.

 
No dia seguinte, bem cedo estávamos a entrar finalmente em Angola; e que difícil foi.
Apesar de termos os vistos em ordem, exigiram-nos, a mim a ao Olivier, a cópia da carta de chamada, bem como o extracto das nossas contas bancárias.
Claro que não estávamos preparados para mostrar esses documentos (não deveria isso ter sido dito quando me entregaram o visto na Zâmbia?!) e apesar de explicarmos que para obtermos os visto previamente já apresentáramos todos esses documentos, os oficiais continuavam insistiam.

Em relação ao extracto bancário expliquei vezes sem conta que não seria possível pois o cartão Visa não emite extractos (mesmo que estivesse a funcionar, o que no meu caso não estava).
Quanto à carta de chamada tinha a sorte de ter guardado cópia no meu computador, "apenas" sendo necessário imprimi-la.
Depois de alguma conversa convenci os oficiais a tentarem imprimir o ficheiro que trazia na minha Pen-drive. Apenas faltava encontrar um computador que tivesse o programa para abrir aquele PDF (e explicar ao chefe de serviço o que era um ficheiro com este formato e que precisava de um computador com um determinado programa- Acrobat Reader, para conseguir?!!!!!!!!!)
 
Bem, conseguem imaginar que a minha paciência estava a chegar ao fim. Tinha gasto tempo e dinheiro para obter o exigente visto para Angola na Zâmbia, passado a noite na fronteira porque os funcionários da migração saíram mais cedo dos seus postos de trabalho e agora continuavam a exigir-me documentos e mais documentos.
 


Olivier a mudar a roda da sua "rat-bike"


Aviso no  "hótel espelunca" onde passámos a noite junto a Santa-Clara:
"Está proibido o uso dos quarto com as companheira dos uso comercial dos seus corpos".


Mais nada: Bem-vindos a Angola!!!


Sessenta dólares de quarto. Lembro-me de pagar o mesmo valor por cinco dias no hotel sobre o Lago Malawi...


Várias horas na fronteira e finalmente tudo estava em ordem. Entrámos no país e o estado das estradas, conforme esperado, agravou-se. Buracos e mais buracos, estradas de terra (mal) batida, camiões desgovernados, muita poeira e lama foi o que apanhamos até ao final do dia.


Aqui a terra-batida começava.
Tinha de diminuir a pressão do ar nos meus pneus.








Buracos, chuva e lama foi uma constante nas estradas pelo sul de Angola


Viajar na época das chuvas não é boa ideia em África, mas tenho poucas alternativas. A chuva começou e agora será assim até casa, primeiro nesta região (Angola e Congos) e depois mais tarde, a Norte.

No final da tarde e com a chuva a cair resolvemos parar e dormir.
Fora das principais cidade angolanas é tarefa quase impossível arranjar uma pensão, algum sítio onde ficar. Sem restaurante,sem hotel, a chover e numa pequena vila ainda longe do Lubango, nosso próximo destino, montámos tenda debaixo de uma "casa".

Noutros tempos talvez ali tenha existido uma residência importante, ou um espaço comercial de relevância na cidade. Agora, abandonada, apenas uma família, dormindo ao relento protegida da chuva pela cobertura avançada, e algumas galinhas, partilhavam aquele espaço com os dois viajantes.



Acampados de qualquer maneira numa vila a cem quilómetros do Lubango, partilhando o espaço com locais, protegidos da chuva


No dia seguinte rumámos para Norte, passando no Lubango ao início da tarde e continuando no ritmo lento possível.

Nessa altura aconteceu algo que mudou toda a história da viagem até Luanda: eu inicialmente estava decidido a ir por Benguela e chegando ao desvio esperei que o Olivier chegasse.
Tínhamos naquele momento a opção de seguir pela estrada que eu tinha previamente planeado ou como alternativa continuar na estrada que segue até ao Huambo, trezentos quilómetros mais à frente.

Nunca tinha feito qualquer uma destas estradas e não sabia quais eram as suas condições.
 
O que aconteceu foi que o Olivier apontou para longe, para as montanhas por onde segue a estrada para Benguela e comentou que havia muitas nuvens com chuva.
Decidimos então seguir pela estrada para o Huambo.

Poucos quilómetros depois, numa altura em que eu ia bastante mais há frente, o Olivier teve um acidente. Dois rapazes com uma pequena mota chinesa saíram da sua faixa, numa estrada perfeita de asfalto, e embateram na mota do francês.
Quando cheguei ao local, voltando para trás, depois de uma meia-hora de espera, vi os dois rapazes no chão inconscientes e o Olivier a levantar a mota.
Alguns locais já estavam perto das motas e diziam que aqueles rapazes tinham estado a beber e a fumar liamba.
Como acontece nesta região em muitos destes casos alguns diziam que iam morrer, que não iam conseguir recuperar,etc.
 
Todos concordavam que o Olivier não tinha culpa nenhuma pelo que aconselhei a irmos embora o mais rápido possível. Com a mala partida, o guiador empenado e alguns arranhões o francês segui-me e parámos uns cinquenta quilómetros mais à frente, uma vez que nessa altura já chovia bastante e estava a ficar escuro.

Estávamos numa pequena vila a uns duzentos quilómetros do Huambo. O susto de umas horas atrás já tinha passado e o melhor remédio era tentar esquecer e arranjar mais tarde a mota  em Luanda.

Se a noite anterior tinha sido mal dormida essa ainda foi pior. A chover torrencialmente o único local que encontrámos para descansar foi uma pensão.
Imaginem uma pensão, isto é o que foi uma pensão no tempo colonial, trinta anos atrás. As pessoas que agora gerem a única pensão na cidade conseguiram não mexer em nada desde aquele tempo: o telhado está a cair, chove dentro de casa, a cozinha...bem a cozinha deixou de o ser há muito, na única casa-de-banho para a meia-dúzia de quartos não corre água e, claro está, não há luz em toda a casa.
Os quartos são pequenos com mobília e roupa-de-cama de "boa qualidade" chinesa e a substituir os vidros partidos estão... tijolos.
 
E todo este luxo por apenas 40 USD a noite... Aí está Angola no seu pior.

Para melhorar a noite o conselho da "gerente" da pensão em tirar tudo o que tínhamos na mota, isto é, toda a bagagem que fosse possível ser roubada, pois nas imediações "há bandido".







Pensão Central: Angola no seu pior

Ainda de madrugada acordámos e resolvi despedir-me do meu amigo francês, pelo menos até Luanda. Os ritmos diferentes de condução não me faziam apreciar a condução e decidi continuar sozinho.

Antes de partir pedi conselhos a um senhor da vila sobre o estado das estradas até ao Huambo tendo ele dito que, seguindo eu por aquele caminho, apanharia apenas umas poucas dezenas de quilómetros de estrada com buracos, mas que depois "a estrada estava boa".
 
Uma das sábias regras de viajar é não acreditar em nada do que nos vão dizendo sobre as condições das estradas, especialmente habitantes locais.
Eu quis acreditar e sob uma chuvada (logo de manhã para começar o dia) fui percorrendo uma estrada de lama, quilómetro após quilómetro. Buracos, cursos de água, lombas, lama, de tudo um pouco aquela estrada tinha.
Porém ainda (queria) acreditava no conselho e achava que a qualquer momento o alcatrão iria surgir.

Mas em vez do alcatrão foras as quedas que apareceram e o cansaço começou a instalar-se.
Deviam ser umas dez da manhã e eu já tinha muitas horas de condução, sob chuva e pela lama.
Ao longe a estrada passava por um charco lamacento e havia rastos de carros até ele. O que eu não vi foi um desvio, uns cem metros antes do charco, que funcionava como passagem para as motas da aldeia próxima, e resolvi entrei sem pensar naquele "lago".
 
Pouco depois, ainda em cima da mota, tinha água até à cintura. Estava coberto e tombei a mota naquele lamaçal. Não havia ninguém por perto e gritei de fúria.
 
Que estúpido tinha eu sido. E agora?! A Miss estava mergulhada na água e coberta de lama.
Consegui naquele momento tirar o meu saco estanque e uma corda para reboque que tinha no seu interior. Depois prendi a corda na forquilha da mota e com ajuda de uma carrinha que tinha entretanto aparecido retirei a Miss.
 
Nada mais podia fazer. Estava cansado, completamente encharcado, a mota tinha sido mergulhada naquela água suja, tudo era lama.
Comecei por tirar as velas da mota e vi que o caso era sério: tudo tinha água, tudo estava cheio de água lamacenta.

Pensei em colocar  a Miss em cima de um carro e seguir até ao Huambo. O facto de ter muito pouco dinheiro, apenas o suficiente para a gasolina para chegar a Luanda também me preocupava.

Com alguma sorte apareceu uma carrinha, cheia de pessoas à boleia, sacos de fuba e cabras. Negociei o preço até ao Huambo e segui naquela picada sofrida. Foram mais de sete horas de picada lamacenta e por várias vezes a carrinha atolou e fomos nós, passageiros que a empurramos para, com a ajuda de ramos e folhas, sair dali.
Já de noite chegámos ao Huambo, depois de longas horas, sentado sobre a Miss An (que estava deitada sob os sacos de fuba) para esta não saltar nos buracos.
 
Não consigo descrever o cansaço e frustração que sentia naquele momento. Não comia nada há mais de 24 horas, não tinha bebido nada o dia inteiro, estava sujo, cansado e sem dinheiro. É verdade, não tinha 1 kwanza no bolso.

Tinha de chegar a Luanda para pedir algum dinheiro emprestado, ter o meu cartão VISA e organizar o transporte da Miss até à capital.

Falei com alguns polícias e expliquei a situação. Não tinha ninguém conhecido no Huambo, queria chegar a Luanda o mais rápido possível e precisava de um local seguro para deixar a mota até a puder  ir buscar.

Acabei por dormir nessa noite na esquadra, literalmente no meio da sala da esquadra da polícia do Huambo. Muito agradeço a esta esquadra que me ajudou, mesmo sem terem quaisquer condições para trabalhar (basta dizer que essa esquadra fica numa dessas casas coloniais ocupadas sem condições, sem luz nem água, com uma sala que serve para tudo, incluindo dormidas).
Ainda de madrugada o carro patrulha levou-me até à paragem de táxi onde apanhei o "candongueiro" para Luanda.
 
A Miss ficou dentro do posto policial e só passado algumas semanas a consegui vir buscar.




Dia do acidente, pouco antes de "me afundar no charco"


Cheguei a Luanda de "táxi" no meio do dia,  depois de mais de 500 quilómetros e uma mão cheia de paragens para pagar subornos à polícia de trânsito angolana que usa os táxis e todas as viaturas que circulam como meio para obter um salário gordo no final do mês.

Corrupção à parte, estava finalmente em Luanda ainda que sem a Miss e a precisar de me organizar: arranjar o cartão Visa, ir buscar a Miss Africa, pô-la a trabalhar, tirar os vistos para alguns dos países que irei atravessar e...descansar.

Acabara a primeira parte da viagem. Estava de regresso a Luanda, já com 32.000 quilómetros percorridos por África em quase oito meses.
Tenho muitas saudades de casa, da minha família e amigos e tenho de recuperar forças para a segunda etapa até Portugal.

Agora será sempre a subir e os desafios serão maiores. Contudo a ideia de chegar de mota a Portugal, estar finalmente em casa junto da minha família faz com que as forças apareçam e os obstáculos sejam vistos como ultrapassáveis.

Preciso então de um intervalo. Assim, este é o fim da Primeira-Parte.



Entretanto em Luanda:




Chegada da Miss a Luanda, mais de duas semanas depois do acidente e reparação em curso


4 comentários:

  1. Prezado Gonçalo,

    Estou acompanhando sua viagem e me deliciando com seus relatos e fotos.

    Publiquei na URL abaixo um artigo sobre ela.

    http://www.viagemdemoto.com/2011/05/viagem-de-moto-pela-africa.html

    Boa sorte e tranquila e serena estrada.

    ResponderEliminar
  2. Agora em Portugal, com mais net, deliciei-me com essas aventuras pá! E grandes fotos... Punho na Miss e rumo ao objectivo...

    ResponderEliminar
  3. É preciso mm ter fígado de aventureiro mas calma q mtas surpresas boas ainda estão por vir... ;)
    Bjão da MIS

    ResponderEliminar
  4. "Aliás, essa é uma razão pela qual nunca contactei qualquer embaixada portuguesa pelos países por que tenho passado" É verdade Gonçalo, uma vergonha.... Esse Perestrelo não deve fugir á mediocridade que para nosso mal, assola este país ...., somos fantásticos , com uma história fantástica como esta que tens estado a "rescrever" mas, não ha bela sem senão, hoje somos regidos por esta corja, que não faz a minima ideia do que é a causa publica... Enfim, prabéns, vou continuando a sonhar com Africa através dos teus "post´s". Abrç Rui Forjaz

    ResponderEliminar