domingo, 24 de abril de 2011

Paragens nas boxes (Tete, Moçambique)


Na fronteira, a falar português, tudo o que precisava acabou por se arranjar.

A boleia até Tete foi negociada com um motorista que se encontrava no local e uma vez mais com a ajuda de algumas pessoas no local a Miss An foi colocada na caixa de uma pequena camioneta. Esperava-nos quase trezentos quilómetros até à cidade e uma vez fechado o negócio queria fazer-me à estrada o mais rapidamente possível. Achei que seria um trajecto directo, sem paragens uma vez que o combinado terá sido isso mesmo, pagando  um valor que em Moçambique é muito elevado.

Naturalmente enganei-me: a viagem demorou mais de sete horas, parando dezenas de vezes para o motorista fazer um dinheiro extra com passageiros, viajando todos na caixa da camioneta, juntamente com a Miss An; coisa normal em África.

Cheguei já escuro a Tete onde liguei ao meu contacto na cidade (o dono da oficina em Joanesburgo deu-me o telefone de um amigo sul-africano que aí vive) e ele esperava-me na berma da estrada quando me aproximei da cidade.
Seguimos o senhor até casa e descarregámos a Miss. Convidou-me para lá ficar em casa; vivia sozinho, tinha as ferramentas necessárias e ajudar-me-ia no que precisasse. Aceitei de imediato, paguei ao motorista, agradeci e fui tomar um duche.

Uns dias mais tarde (mais de uma semana depois, confesso) apercebi-me que o capacete, o meu amado e confortável capacete BMW tinha desaparecido. Nunca soube o que lhe aconteceu mas desconfio que nunca foi retirado daquela camioneta e seguiu caminho de volta para a fronteira com o Malawi.
Lanço o apelo a todos os que estão por Moçambique:  se virem alguém a conduzir com capacete (coisa raríssima naquela banda) reparem se não o faz com um BMW Rally de cor cinza com viseira fumada...:)

Mas o capacete era a menor das minhas preocupações: tinha o quadro partido e a embraiagem não funcionava. Era só nisso em que pensava e tudo o resto era naquele momento secundário.
A primeira tarefa foi a de tentar perceber o que se passava com a embraiagem pois não fazia sentido o facto de me ter precavido meses antes, gastando uma pequena fortuna na colocação de um novo disco de embraiagem em cerâmica (com garantia vitalícia) e agora, passado uns milhares de quilómetros, estar com estes problemas.

O sistema de embraiagem numa mota é um assunto sensível e costuma ser um tema muito discutido entre viajantes. Queimar um disco de embraiagem é um tema delicado pois além de ser muito difícil encontrar um disco adequado para substituir em qualquer país de África (para não dizer impossível) também exige um mecânico qualificado com experiência para fazer esse trabalho, o que é tanto ou mais complicado de arranjar como a própria peça.

Mas, uma vez mais,  acabei por ter sorte pois um outro conhecido do James, o meu mais recente amigo de Tete, também sul-africano e um mecânico experiente imaginem, tem uma mota igual à Miss Africa e tinha acabado à pouco tempo de lhe montar um disco de embraiagem e estava disponível para dar uma ajuda, ainda que a troco de algumas centenas de dólares.


Miss Africa "no sala de operações" depois de lhe ser retirado o quadro e a embraiagem


Depois do mecânico ter "aberto a bichinha" e lhe ter retirado o disco e os pratos de embraiagem detectou que a avaria era devida aos parafusos que ligam os dois pratos que prendem o disco estarem soltos.
O que deve ter acontecido foi ao colocar o disco novo, alguns meses e uns milhares de quilómetros antes, o mecânico da oficina especializada em Joanesburgo (o que me cobrou uma quantia enorme só de mão-de-obra) distraiu-se e não apertou os parafusos o que, obviamente, provocou aquele estrago.
O disco encontrava-se danificado e seria necessário um novo que teria de vir da África do Sul.

O trabalho que agora tinha de ser feito enquanto a peça não chegava (enviada imediatamente pela oficina  da África do Sul, depois de eu ainda ter de arranjar um portador) era tirar o quadro partido da mota e repara-lo, aproveitando para rever todos os reforços que tinham sido (mal) feitos por outra oficina em Nairóbi no Quénia.
Resumindo, todos os reforços feitos há poucos meses foram eliminados e refeitos, desta vez de uma forma correcta, ficando agora com a certeza que não iria ter mais problemas com o quadro da mota.

Com toda esta (má) experiência aprendi que por mais reconhecidas que sejam as oficinas com que trabalhamos tudo pode acontecer e é importante acompanhar os trabalhos de perto. Aliás o que podemos fazer é somente isso pois no final nada é garantido e as coisas podem sempre correr mal.

Apesar de tudo não me fui abaixo; sabia que não ganhava nada em me aborrecer e aproveitei o tempo de espera para reforçar o quadro da mota, substituir alguns parafusos e claro, ganhar algum conhecimento da mecânica da Miss.
Na verdade esperava uma oportunidade como esta para ser obrigado a pegar nas ferramentas e conhecer melhor a minha mota. E ali, mais do que em qualquer outro sítio, o momento era ideal.
 
O James, um senhor nos seus sessenta anos, acabou de vender o negócio de pesca que tinha junto da barragem de Cabora Bassa e tem muito tempo, alguma paciência e muito gosto pela mecânica.
Além de boas ferramentas tem igualmente experiência no arranjo de motas, tendo uma GS igual à Miss, três GS 650 e agora uma KTM 990 Adventure.
Assim, tive a sorte de ficar ali com ele, um companheiro, um amigo e um mestre. Mas as coisas não foram fáceis: apesar do alojamento, do acompanhamento e da experiência do James tive de ser eu a fazer as coisas. Um pouco como um bom professor e um aprendiz: apesar de ele saber e poder fazer tudo aquilo  de uma maneira mais rápida preferia que fosse eu, apesar de lento e inexperiente a fazer as coisas.

Aprendi assim a usar a máquina de corte circular, a rebarbar, a soldar e mais difícil a ter de desmontar uma quantidade enorme de peças (incluindo cabos eléctricos) e no fim voltar a por tudo a funcionar. Tudo acabou por ficar (quase) perfeito (como percebi, da pior maneira, mais à frente já no Botswana).
 Além do quadro ter sido reforçado nos pontos que me pareceram frágeis, foi pintado e de novo montado (a tarefa mais difícil de todo o processo pois o ângulo com que foi soldado era de todo impossível de reproduzir como o original).
Digo com muito orgulho que ficou um excelente trabalho pois foi um grande esforço para mim fazer este trabalho e por acreditar que ficou agora um super-quadro e deste modo, muito mais resistente do que o original.
Não sabendo trocar um pneu há pouco mais de 2 anos "descasquei" a minha GS, tirei-lhe o quadro e reforcei-o. Mais complicado, voltei a pôr tudo no mesmo sitio e imaginem: nem sobraram muitas peças. :)

O disco de embraiagem tinha entretanto chegado e foi montado pelo mecânico sul-africano. Espero  sinceramente que não me dê mais problemas.
Veremos, afinal ainda faltam muitos quilómetros até à garagem lá de casa em Queluz.
 
Foram mais de duas semanas de trabalho intenso e apesar de me dedicar exclusivamente ao trabalho mecânico fui por diversas vezes até ao centro da cidade.
A província de Tete, com uma população de pouco mais de um milhão de habitantes, é das que mais tem crescido nos últimos anos, muito pelo elevado investimento que empresas estrangeiras têm feito na zona, riquíssima em recursos minerais, principalmente carvão.

Também esta região é conhecida pela famosa barragem de Cabora Bassa. Uma das maiores barragens do Mundo (e a maior barragem em volume de betão em África), esta construção foi  iniciada em 1970 e é actualmente ali onde é produzido a maior parte da electricidade de Moçambique (mais de 2000 megawatts de energia), exportando ainda para os países vizinhos.
Os imensos recursos do rio Zambeze e daquela zona, designada  por “Vale do Zambeze”, resultou naquela construção fundamental para o abastecimento de energia a uma vasta região africana.
 Em 2006 o Estado português vendeu parte da participação de 82% que detinha no consórcio de exploração da barragem, ao estado moçambicano, ficando apenas com 15% do capital e como não podia deixar de ser a venda foi muito mediatizada.
A expressão "Cabora Bassa é nossa!!!" ainda se ouve nas ruas das cidades de Moçambique. Ali em Tete, com as muitas falhas de energia que testemunhei enquanto lá estive, ouvi por várias vezes em tom sarcástico da boca de Moçambicanos: "Porra, Cabora é mesmo nossa..."

 Gostaria de ter ido visitar a barragem e até já tinha a autorização e guia necessários para ir,  mas o tempo era curto e a vontade de continuar a viagem era muita e, deste modo, adiei a visita para a próxima. Mais uma boa razão para voltar a Moçambique (tenho já uma lista extensa).

Fiquei-me então pelos cafés da cidade, com vista para o impressionante Rio Zambeze, uma visita às antigas minas de Moatize e ainda tive tempo para comemorar o dia da cidade de Tete com uma corrida de motas ao estilo africano.

Vale a pena salientar ainda que a cidade de Tete é uma das cidades mais quentes do mundo, chegando várias vezes aos 50 graus. Contaram-me que na estação mais "fria" do ano a temperatura baixa para os 30 graus e muita gente anda com casaco na rua...


Vista para o centro da cidade dominada ao fundo pelo rio Zambeze


Apresentação com estilo da corrida de "cinquentinhas" anual na cidade 
 


 As motas (todas com 50cm3 e claro chinesas)





Os pilotos: todos moçambicanos e equipados "à maneira"




A volta de aquecimento com direito a "safety-moto"


 Sempre que o público invadia a estrada a organização batia com o pau (TIA)




Finalmente a partida (apenas com três horas de atraso)


Primeira curva, primeiro acidente
(aqui o público a funcionar como rail-de-protecção)




Trinta voltas num percurso no centro da cidade de Tete
(e estas motinhas andavam: 120km/h nesta recta)








 No final o vencedor esmagou a concorrência



A província de Tete faz fronteira com o Malawi (de onde eu tinha vindo), com a Zâmbia e com o Zimbábue. Em pouco mais de duas horas pode-se chegar a qualquer um destes países e a minha escolha foi a de rumar a Oeste em direcção ao Zimbábue.
Assim que a Miss An ficou operacional fiz as malas, despedi-me do James e rumei à fronteira. Outro país, outra cultura e de novo a incrível sensação de viajar em África.


Agora sim, estava doce

2 comentários:

  1. Gonçalo, vi seus comentários de Tete, hoje estou vivendo em Tete e como vi que você viaja por tudo, gostaria de saber se há postos de gasolina no trajeto de tete para a Zambia, você sabe me dizer ?
    Obrigada,

    Luciana Faria
    email: luciana.ca.faria@gmail.com

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    1. gostava de saber mais algo de tete tem alguém com que eu posa comunicar

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