Voltei a entrar na África do Sul, desta vez vindo do Lesoto, encharcado e a tremer de frio.
Em direcção a Pretória tive de parar numa pequena cidade pelo caminho pois o vento e a chuva faziam com que fosse muito difícil manter-me na estrada.
Estava cansado e molhado e resolvi parar perto da pequena cidade de Bohlakong e aí passar a noite. Escolhi uma pensão que anunciava quartos baratos. Chamou-me a atenção o facto de ter um restaurante próprio para os hóspedes e um bar simpático. Desta maneira nem precisaria de sair da pensão. Depois de uma longa viagem, iria finalmente descansar... pensava eu.
Ao contrário da maioria das pensões que encontrei na África do Sul esta era gerida por negros. Uma vez mais reparei que apenas negros frequentavam aquele espaço. Os brancos, apenas os brancos, frequentavam o bar do outro lado da rua.
Depois de um duche quente fui beber uma cerveja com o gerente no bar da pensão. Era sexta-feira e garantiu-me que ali seria a melhor noite da cidade. Apresentou-me um grupo enorme de amigos e todos quiseram saber pormenores da viagem. Durante a noite repeti vezes sem conta a história da viagem: a distância que tinha feito, que ia fazer, a velocidade a que andava, onde estava a minha família, o que pensavam eles disto, etc, etc.
Conversei com alguns deles sobre os problemas raciais do país e, uma vez mais, as coisas me pareceram bastante tensas, demasiado profundas. Contudo, ali estava eu, um branco entre negros, tratado de igual forma, jogando pool, brindando vezes sem conta à continuação de "safe trip".
No dia seguinte fiz os duzentos e poucos quilómetros que me separavam de Pretória onde cheguei com o sol a brilhar e sem qualquer nuvem no céu.
Tinha seguido o conselho de ficar naquela cidade, mais calma, em vez de Joanesburgo. Não me arrependi.
Depois de procurar bastante encontrei um sítio agradável na zona de de Hatfield. O local pareceu-me bastante calmo, com muitos estudantes universitários e pequenos cafés.
Queria ficar ali alguns dias, gozando o descanso, após os exigentes dias passados no Lesoto.
Gostei de Pretória. Além de descansar aproveitei as boas esplanadas que a cidade tem onde, quase sempre a pé, percorri as suas largas avenidas.
Foi ali que mais senti o medo das pessoas em relação à criminalidade. A tensão com que as pessoas vivem surpreendeu-me. Todas as casas têm portões altos, com arame electrificado e segurança 24h por dia. Imagino que seja um sítio com bastantes assaltos mas mesmo assim sinto que se vive com uma preocupação exagerada.
A dona do quarto onde estava, frequentemente me dizia para colocar a mota dentro de casa, durante o dia, com medo do que pudesse acontecer. Não me aconselhava a andar a pé naquele bairro (apesar de o fazer) e falava constantemente da falta de segurança.
Estávamos numa das melhores zonas de Pretória, um bairro parecido com o Restelo, em Lisboa e o bom-senso dizia-me que era relativamente seguro.
Num fim de tarde assisti a um episódio engraçado: um vizinho ligou para a dona da casa onde estava a dizer que havia uma pessoa suspeita na rua, junto ao portão da casa, junto à minha mota. Uma das empregadas veio bater-me na porta muito agitada dizendo para pôr a mota dentro. Quando cheguei ao portão para o fazer vi que o "elemento suspeito" era o nosso segurança que estava a chegar para iniciar o seu turno.
Alguns dias depois li um autocolante colado no vidro de um carro que dizia: "A black man is always a suspect".
Alguns dias depois sai da África do Sul sem ter tido qualquer problema de segurança. Os sinais nas auto-estradas alertando para o elevado risco de roubo ficaram para trás enquanto eu me dirigia para a Suazilândia.
Ainda durante a minha estadia em Pretória aproveitei para fazer uma revisão à mota numa oficina especializada em preparação de motas para viagens.
Em pouco mais de 24 horas o disco de embraiagem foi substituído e algumas mazelas foram tratadas.
Falar com o dono da oficina, uma das pessoas que mais viagens de mota tem por África, deu-me bastante confiança para seguir caminho.
De Joanesburgo pouca coisa me ficou. Cidade grande, confusa e claustrofóbica não tive vontade de me demorar por lá. O ponto alto foi a ida ao Soweto, ainda que tenha sido rápida e algo superficial. Deu para ver a dimensão daquela cidade, estabelecida nos anos 60, para juntar uma série de bairros para negros. Ficou conhecida na época do apartheid por ser foco de resistência anti-racista e de protestos dos negros contra a discriminação racial. Uma destas manifestações foi violentamente reprimida pela polícia em 16 de Junho de 1976, passando à história como o Massacre de Soweto.
Com a mota melhor que nunca, segui para Este em direcção à Suazilândia.
Ainda na África do Sul, ao passar por placas que anunciavam Maputo a pouco mais de 300 quilómetros senti uma enorme vontade em chegar a Moçambique.
Contudo o plano estava traçado. Iria passar primeiro pelo Reino da Suazilândia: uma das poucas monarquias que se mantêm no continente africano. Um pequeno país onde predominam os planaltos cobertos por savanas e pastagens, onde a sociedade é formada por clãs e o actual rei, Mswati III, tem nove mulheres e duas noivas (dados que já não devem estar actualizados).
Todos os anos existe uma cerimónia onde o rei escolhe futuras mulheres, onde dezenas de milhares de adolescentes virgens dançam para o seu rei. A cerimónia é pública e tive alguma pena por saber que a próxima será só para o ano.
O seu pai Sobhuza II, que reinou de 1921-1982, tinha 120 esposas quando morreu. Na altura foi decretado um período de castidade para toda a população durando vários meses.
Outras das curiosidades deste país, onde 40% da população tem HIV, são as medidas tomadas pelo governo para combater a doença. Há poucos anos atrás o governo impôs uma greve de sexo de 5 anos a todas as mulheres virgens e menores de idade. Estas só podiam sair à rua com uma espécie de pompom azul e amarelo no cabelo, que servia de sinal de alerta para afastar eventuais interessados. Além disso não podiam usar calças nem cumprimentar os homens com um aperto de mão. Quem infringisse esta lei estava sujeito a pagar pesadas multas. Outra versão do pompom, nas cores preta e vermelha, foi criada para as mulheres solteiras e maiores de idade em que podiam ter relações íntimas com os rapazes, desde que não haja penetração.
Adiante.
Escolhi a aldeia de Mantenga em Ezulwini para descansar. Apesar de ser um local algo artificial, em Mantenga consegue-se ter a experiência interessante de visitar uma aldeia suazi, e assistir-se a danças e cantos típicos daquele pais. Nem o facto de no final das danças, alguns turistas holandeses terem sido convidados a juntar-se aos locais, tirou beleza daquele momento.
Perto da aldeia vê-se a montanha Nyonyane, que era conhecida como "Execution Rock", onde na justiça tradicional, até há algumas décadas atrás, os criminosos eram “convidados” a saltar do alto.
Terminadas as danças e cantos todo o grupo de turistas holandeses foi alojado e eu, sem nada marcado, falei com um dos guias sobre a possibilidade de acampar na aldeia.
Com alguma sorte cedeu-me uma das cabanas tradicionais da aldeia. Assim, deitado sobre o barro vermelho duma tenda Suazi adormeci rapidamente antes do relógio dar as 8 da noite.
Na manhã seguinte acordei ainda de madrugada e iniciei a "caminhada".
Rumei a Este sem nada definido relativamente ao meu próximo destino. Com bom tempo e estradas agradáveis rapidamente começaram a aparecer placas indicando Maputo a poucas centenas de quilómetros, o que viajando por África, representa uma curta distância.
Assim, tomei a fácil decisão de rumar à fronteira.
Atravessei, ainda em território Suazi, a reserva de Lhane onde vi girafas e outros animais junto à estrada, e cheguei à fronteira para Moçambique, em Namaacha.
Tive uma sensação agradável de chegar a casa (não tão intensa quanto chegar a Portugal). Talvez não "à minha casa". Talvez "à casa de um amigo".
Parei no primeiro portão da fronteira e um grupo de polícias dirigiu-se a mim: - "Welcome".
Tirei o capacete com calma e disse-lhe com um sorriso aberto -"Podem falar português que nos entendemos!!!"
Sem dinheiro para pagar o visto de Moçambique deixaram-me entrar provisoriamente no país para ir ao banco. Correu bem. Sem gasosas, sem complicações, com simpatia.
A minha entrada em Moçambique foi, aplicando uma expressão corrente no vocabulário do moçambicano, doce.
Acredito que a minha estadia por aqui se vá tornando cada vez mais doce à medida que for conhecendo melhor o país e as pessoas.
Em direcção a Pretória tive de parar numa pequena cidade pelo caminho pois o vento e a chuva faziam com que fosse muito difícil manter-me na estrada.
Estava cansado e molhado e resolvi parar perto da pequena cidade de Bohlakong e aí passar a noite. Escolhi uma pensão que anunciava quartos baratos. Chamou-me a atenção o facto de ter um restaurante próprio para os hóspedes e um bar simpático. Desta maneira nem precisaria de sair da pensão. Depois de uma longa viagem, iria finalmente descansar... pensava eu.
Ao contrário da maioria das pensões que encontrei na África do Sul esta era gerida por negros. Uma vez mais reparei que apenas negros frequentavam aquele espaço. Os brancos, apenas os brancos, frequentavam o bar do outro lado da rua.
Depois de um duche quente fui beber uma cerveja com o gerente no bar da pensão. Era sexta-feira e garantiu-me que ali seria a melhor noite da cidade. Apresentou-me um grupo enorme de amigos e todos quiseram saber pormenores da viagem. Durante a noite repeti vezes sem conta a história da viagem: a distância que tinha feito, que ia fazer, a velocidade a que andava, onde estava a minha família, o que pensavam eles disto, etc, etc.
Conversei com alguns deles sobre os problemas raciais do país e, uma vez mais, as coisas me pareceram bastante tensas, demasiado profundas. Contudo, ali estava eu, um branco entre negros, tratado de igual forma, jogando pool, brindando vezes sem conta à continuação de "safe trip".
No dia seguinte fiz os duzentos e poucos quilómetros que me separavam de Pretória onde cheguei com o sol a brilhar e sem qualquer nuvem no céu.
Tinha seguido o conselho de ficar naquela cidade, mais calma, em vez de Joanesburgo. Não me arrependi.
Depois de procurar bastante encontrei um sítio agradável na zona de de Hatfield. O local pareceu-me bastante calmo, com muitos estudantes universitários e pequenos cafés.
Queria ficar ali alguns dias, gozando o descanso, após os exigentes dias passados no Lesoto.
Gostei de Pretória. Além de descansar aproveitei as boas esplanadas que a cidade tem onde, quase sempre a pé, percorri as suas largas avenidas.
Foi ali que mais senti o medo das pessoas em relação à criminalidade. A tensão com que as pessoas vivem surpreendeu-me. Todas as casas têm portões altos, com arame electrificado e segurança 24h por dia. Imagino que seja um sítio com bastantes assaltos mas mesmo assim sinto que se vive com uma preocupação exagerada.
A dona do quarto onde estava, frequentemente me dizia para colocar a mota dentro de casa, durante o dia, com medo do que pudesse acontecer. Não me aconselhava a andar a pé naquele bairro (apesar de o fazer) e falava constantemente da falta de segurança.
Estávamos numa das melhores zonas de Pretória, um bairro parecido com o Restelo, em Lisboa e o bom-senso dizia-me que era relativamente seguro.
Num fim de tarde assisti a um episódio engraçado: um vizinho ligou para a dona da casa onde estava a dizer que havia uma pessoa suspeita na rua, junto ao portão da casa, junto à minha mota. Uma das empregadas veio bater-me na porta muito agitada dizendo para pôr a mota dentro. Quando cheguei ao portão para o fazer vi que o "elemento suspeito" era o nosso segurança que estava a chegar para iniciar o seu turno.
Alguns dias depois li um autocolante colado no vidro de um carro que dizia: "A black man is always a suspect".
Alguns dias depois sai da África do Sul sem ter tido qualquer problema de segurança. Os sinais nas auto-estradas alertando para o elevado risco de roubo ficaram para trás enquanto eu me dirigia para a Suazilândia.
Ainda durante a minha estadia em Pretória aproveitei para fazer uma revisão à mota numa oficina especializada em preparação de motas para viagens.
Em pouco mais de 24 horas o disco de embraiagem foi substituído e algumas mazelas foram tratadas.
Falar com o dono da oficina, uma das pessoas que mais viagens de mota tem por África, deu-me bastante confiança para seguir caminho.
Mudança do disco de embraiagem (nas lonas) e revisão geral na Cytech em Joanesburgo
Mapa "king-size" de África na parede da oficina da Cytech
Pronta para África
Mapa "king-size" de África na parede da oficina da Cytech
Pronta para África
De Joanesburgo pouca coisa me ficou. Cidade grande, confusa e claustrofóbica não tive vontade de me demorar por lá. O ponto alto foi a ida ao Soweto, ainda que tenha sido rápida e algo superficial. Deu para ver a dimensão daquela cidade, estabelecida nos anos 60, para juntar uma série de bairros para negros. Ficou conhecida na época do apartheid por ser foco de resistência anti-racista e de protestos dos negros contra a discriminação racial. Uma destas manifestações foi violentamente reprimida pela polícia em 16 de Junho de 1976, passando à história como o Massacre de Soweto.
Com a mota melhor que nunca, segui para Este em direcção à Suazilândia.
Ainda na África do Sul, ao passar por placas que anunciavam Maputo a pouco mais de 300 quilómetros senti uma enorme vontade em chegar a Moçambique.
Contudo o plano estava traçado. Iria passar primeiro pelo Reino da Suazilândia: uma das poucas monarquias que se mantêm no continente africano. Um pequeno país onde predominam os planaltos cobertos por savanas e pastagens, onde a sociedade é formada por clãs e o actual rei, Mswati III, tem nove mulheres e duas noivas (dados que já não devem estar actualizados).
Todos os anos existe uma cerimónia onde o rei escolhe futuras mulheres, onde dezenas de milhares de adolescentes virgens dançam para o seu rei. A cerimónia é pública e tive alguma pena por saber que a próxima será só para o ano.
O seu pai Sobhuza II, que reinou de 1921-1982, tinha 120 esposas quando morreu. Na altura foi decretado um período de castidade para toda a população durando vários meses.
Outras das curiosidades deste país, onde 40% da população tem HIV, são as medidas tomadas pelo governo para combater a doença. Há poucos anos atrás o governo impôs uma greve de sexo de 5 anos a todas as mulheres virgens e menores de idade. Estas só podiam sair à rua com uma espécie de pompom azul e amarelo no cabelo, que servia de sinal de alerta para afastar eventuais interessados. Além disso não podiam usar calças nem cumprimentar os homens com um aperto de mão. Quem infringisse esta lei estava sujeito a pagar pesadas multas. Outra versão do pompom, nas cores preta e vermelha, foi criada para as mulheres solteiras e maiores de idade em que podiam ter relações íntimas com os rapazes, desde que não haja penetração.
Adiante.
Escolhi a aldeia de Mantenga em Ezulwini para descansar. Apesar de ser um local algo artificial, em Mantenga consegue-se ter a experiência interessante de visitar uma aldeia suazi, e assistir-se a danças e cantos típicos daquele pais. Nem o facto de no final das danças, alguns turistas holandeses terem sido convidados a juntar-se aos locais, tirou beleza daquele momento.
Perto da aldeia vê-se a montanha Nyonyane, que era conhecida como "Execution Rock", onde na justiça tradicional, até há algumas décadas atrás, os criminosos eram “convidados” a saltar do alto.
Terminadas as danças e cantos todo o grupo de turistas holandeses foi alojado e eu, sem nada marcado, falei com um dos guias sobre a possibilidade de acampar na aldeia.
Com alguma sorte cedeu-me uma das cabanas tradicionais da aldeia. Assim, deitado sobre o barro vermelho duma tenda Suazi adormeci rapidamente antes do relógio dar as 8 da noite.
Na manhã seguinte acordei ainda de madrugada e iniciei a "caminhada".
Rumei a Este sem nada definido relativamente ao meu próximo destino. Com bom tempo e estradas agradáveis rapidamente começaram a aparecer placas indicando Maputo a poucas centenas de quilómetros, o que viajando por África, representa uma curta distância.
Assim, tomei a fácil decisão de rumar à fronteira.
Atravessei, ainda em território Suazi, a reserva de Lhane onde vi girafas e outros animais junto à estrada, e cheguei à fronteira para Moçambique, em Namaacha.
Tive uma sensação agradável de chegar a casa (não tão intensa quanto chegar a Portugal). Talvez não "à minha casa". Talvez "à casa de um amigo".
Parei no primeiro portão da fronteira e um grupo de polícias dirigiu-se a mim: - "Welcome".
Tirei o capacete com calma e disse-lhe com um sorriso aberto -"Podem falar português que nos entendemos!!!"
Sem dinheiro para pagar o visto de Moçambique deixaram-me entrar provisoriamente no país para ir ao banco. Correu bem. Sem gasosas, sem complicações, com simpatia.
A minha entrada em Moçambique foi, aplicando uma expressão corrente no vocabulário do moçambicano, doce.
Acredito que a minha estadia por aqui se vá tornando cada vez mais doce à medida que for conhecendo melhor o país e as pessoas.
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