domingo, 9 de outubro de 2011

Senegal e A Gâmbia: "diferentes luces en un mismo dia"


Ao sair da Guiné despedi-me da África negra, que eu prefiro chamar de "África dos meus sonhos", uma terra que eu aprendi a gostar pela "inocência" da sua gente pouco ou nada habituada a turistas e viajantes.

O Senegal é bem diferente, mas não Casamansa, a região a sul da Gâmbia. Essa podia quase pertencer à "nossa" Guiné.

Segui então para Ziguinchor, onde já tinha pernoitado, quando semanas antes vim do Mali.
Desta vez, apenas atravessei a bonita cidade, capital de Casamansa no sul do país.

Há certos locais que me dão verdadeira vontade de conhecer um pouco mais da sua história e esta região conturbada, é um desses casos.
No geral, aproveitando a viagem que estou a fazer, interessa-me entender a maneira como este continente foi retalhado e repartido pelos europeus, como foram criados os países, muitos ainda tão jovens e  claro, fascina-me observar (in loco) as variadas influências exteriores que este continente sofre, ajudando a esta inigualável riqueza cultural e bonita mestiçagem.

A história desta Ziguinchor não difere muito das outras na costa de África: no século XV, o navegador português Dinis Dias "descobriu" aquela povoação e a partir dali colonizou toda a região usando os seus vários rios (Casamansa, Cacheu, Geba e Buda) com vista ao comércio de escravos.
A prosperidade do negócio atraiu comerciantes franceses, tendo dado origem a disputas e combates até ao século XVIII.
Durante a Conferência de Berlim (1884-1885), que repartiu o continente africano por ingleses, franceses, belgas, alemães e portugueses, Portugal cedeu à França a região de Casamansa, incluindo a cidade de Ziguinchor.
Interessante saber que em troca da cedência destes territórios, a França reconheceu a Portugal o direito de exercer a sua influência nos territórios de Angola e de Moçambique (o Mapa Cor-de-Rosa estudei em História, há muitos anos atrás e que só agora me desperta interesse...).

Nessa altura Casamansa tornou-se uma colónia francesa, mas ainda não integrada ao Senegal, sendo nesse momento estabelecidas as fronteiras entre essa região e a colónia da Guiné Portuguesa (actual Guiné-Bissau), a sul.
Depois da Segunda Guerra Mundial, foi estabelecida a Federação do Mali, que incluía o território do Senegal e de Casamansa e dois anos depois do estado se tornar independente em 1958, o Mali, exigindo que a capital fosse em Bamaco ao invés de Dakar, retirou-se da aliança.
Nasceram então dois novos países, Mali e Senegal, ficando unida por duas décadas a região de Casamansa a este último, através de um documento assinado nessa ocasião.

Para resumir, o que aconteceu e ainda não foi resolvido (daí os problemas com os ditos "rebeldes" independentistas naquela região, que já devem ter ouvido falar) foi que 20 anos depois o Presidente do Senegal entendeu que "para o bem daquelas nações", Casamansa deveria permanecer unida ao Senegal, mantendo-se tudo na mesma até este momento.
Desde então a luta entre o MFDC (movimento separatista armado, à semelhança da ETA no país Basco) e as forças armadas senegalesas têm causado forte instabilidade na região, resultando em muitas mortes e milhares de refugiados.
Naturalmente, como não podia deixar de faltar em questões do género, acrescenta-se a este tema as vastas reservas de petróleo que se estimam existir em Casamansa, tendo já o governo senegalês vendido o direito de exploração a uma empresa estrangeira. Mais palavras para quê!?

Embora o Senegal seja rico em fosfato, o país sobrevive graças à ajuda prestada regularmente pelo governo francês, e esses recursos permanecem na capital, não chegando às demais regiões.
A principal fonte de receita do sul do país é o turismo que obviamente está a ser enormemente afectado com toda esta instabilidade.
Durante os 45 quilómetros que separam Ziguichor do Cabo Skirring impressionou-me o número de viaturas militares na estrada e principalmente o número de postos de paragem obrigatória (pensava eu que na Nigéria eram muitas...), onde fui obrigado a mostrar os documentos.



Estrada Ziguinchor-Cabo Skirring



O prémio por "correr o risco" de viajar numa zona conturbada foi ter podido ter as excelentes praias daquela costa só para mim (sim, porque os turistas nem vê-los).
Aquelas são sem dúvida das melhores praias em África para "ir a banhos": águas mornas, com muita ondulação (dá para apanhar umas ondas, pessoal do surf!!!), areais extensos, muitas palmeiras e todo um cenário paradisiaco, faz com que ali apeteca ficar.

Dei-me então ao descanso e acabei por ficar três dias. Confesso que não fazia conta de ficar todo esse tempo quando ali cheguei pois a verdade é que tinha descansado bastante na Guiné-Bissau (não tinha feito grandes tiradas de moto, nem tão pouco enfrentado más estradas), mas agora que a viagem caminha para o final sinto cada vez mais vontade de ir ficando, de prolongar as minhas estadias.

Tomei a decisão de ficar quando estava a voltar para o quarto depois da minha primeira caminhada pela praia, com o céu totalmente encoberto. Foi no final da tarde e já pensava não ver o sol naquele dia.

(Tenho pensado como é engraçado a beleza que atribuímos às coisas influenciados pela sua cor e luz. Como a natureza e os objectos, apenas com uma pequena variação de cor, alteram o seu aspecto e se tornam belas e especiais quando antes as considerávamos apenas vulgares.
Até o nosso estado de espírito se altera com a luz e temperatura do local onde estamos.)

Tinha então a ideia formada de me ir embora na manhã seguinte bem cedo e apenas porque algumas nuvens que cobriam o sol se moveram um pouco, deixando a luz mágica do final da tarde entrar, enchendo tudo de tons laranja e trazendo um pouquinho mais de calor, decidi ficar (que bom é viajar sem ter planos rígidos... e que bom é o sol e o calor!).

Foi uma decisão acertada e passei assim os dias seguintes entre caminhadas e mergulhos.
Lembrei-me enquanto brincava nas ondas durante horas sem me cansar, com todos aqueles quilómetros de praia só para mim, das otites frequentes que apanhava quando era criança.
Ali, naquela água quentinha e com ondas, fui de novo criança por alguns dias.

Durante as noites dava uma volta até à vila mais próxima onde jantava e no dia em que o Benfica jogou com o Man United, os mergulhos acabaram mais cedo e fui procurar um sítio para ver o jogo.
Tem sido fácil ver futebol na televisão em practicamente todos os países por onde tenho passado pois os africanos devoram futebol e muitos bares, restaurantes e espaços improvisados transmitem os jogos mais importantes.
Muita da gente local sabe dizer o nome de todos os jogadores do Real Madrid ou Man United e devo dizer que o C. Ronaldo tem ajudado à simpatia com que a grande maioria das pessoas mostra quando digo que sou português (o que me ajudada bastante também com a polícia...).

Bem, acontece que não conseguia encontrar um sítio que tivesse a dar o Benfica e acreditem que bati a todas as portas.
Já andava eu a rogar pragas ao franceses e à estúpida da sua televisão que transmitia um jogo do PSG, quando ao passar por uma pequena loja de venda de artesanato vi que a mini-televisão que tinham à porta estava a transmitir o jogo.
O canal era do Congo e o dono da loja, um senhor senegalês mais velho, era a única pessoa da vila a ter aquele canal (saiba-se lá porquê), estando com ele alguns amigos a assistir à partida.
Ao ver-me aflito, uma vez que já tinha começado o jogo aí à uns vinte minutos, convidou-me a sentar, fazendo o favor de explicar, sempre que chegava mais um amigo, que eu era português e assim o Benfica era a minha equipa.
Enquanto me falava do Eusébio e da selecção portuguesa no mundial de 66, o Cardoso estoirou e marcou um golão. Todos se riram da forma efusiva como festejei e pouco depois sentiram pena de mim quando o Man United empatou.
Enquanto eu me mantinha sentado num banco de madeira entre os senhores, que usavam um "abanico" em palha que aqui no senegal tem várias utilizações (refrescar, afastar moscas e melgas, "puxar" a brasa do carvão, etc.), alguns iam-se levantando e faziam as suas orações a poucos metros dali, num tapete colocado meio do passeio daquela rua.
Assim entre orações e abanos, vi o meu Benfica empatar e despedi-me dos senhores para ir dormir.
Passei assim a minha última noite em Cabo Skirring e na região de Casamance.

No dia seguinte rumei a norte pela manhã e poucas horas depois já estava na Gâmbia.



Mergulhos na fabulosa praia de Cabo Skirring


Mais uma passagem por Ziguinchor,
desta vez a caminho da Gâmbia



Pouca ou nada coisa mudou na paisagem quando entrei na Gâmbia, um pequeno pedaço de terra (o mais pequeno país em África) com apenas 500 quilómetros de comprimento e 50 de largura.
Ao atravessá-lo vindo de sul, junto à costa, apenas tive de fazer uma centena de quilómetros (isso porque optei por dar umas pequenas voltas) dentro do país.
Nunca andei tão curta distância num país como ali, na Gâmbia.

Pouco depois de entrar, já as paragens policiais começavam. Na primeira, a qualquer coisa como 5 quilómetros do posto fronteiriço, pediram-me em bom inglês (finalmente um país em que me posso expressar) que abrisse as malas. Não me lembro de durante a viagem terem pedido para o fazer e claro, contrariado e irritado por ter de abrir tudo o que trazia comigo, tive de lhes fazer a vontade.
Depois de lhes mostrar todo o meu desagrado por ter aquele trabalho (não é agradável ter de desamarrar tudo, tirar os sacos, abri-los, tirar tudo o que lá está dentro e explicar o que é e para que serve; isto no meio da estrada, encostado na berma, com o fato da mota vestido e a suar sob um calor intenso) disseram-me que é regra parar todas as viaturas com matricula estrangeira vindo do sul pois há muito tráfego de droga desde a Guiné- Bissau rumo a países do norte.
No final de uma boa uma hora arrumei tudo e lá "fizemos as pazes" (eu entendo que estão só a fazer o trabalho deles, mas depois de passar algum tempo na fronteira, ter de parar uns minutos depois para fazerem tudo aquilo...bem tudo bem, não tenho mesmo hora, nem tão pouco sítio onde tenha de estar, pensei).

Acreditam que quinze minutos depois, aí uns vinte quilómetros mais à frente, mandaram-me encostar de novo e fizeram-me abrir as malas?!
Dessa vez, com a minha impaciência e explicando-lhes que ainda há pouco tempo uns colegas tinham inspeccionado a mota, foram mais razoáveis e mandaram-me "apenas" abrir o saco grande que trago comigo.
Só o facto de sair da mota já dá algum trabalho (encontrar um local adequado para pôr o descanso lateral, pois de contrário é queda certa, como já aconteceu dezenas de vezes), depois é "só" ter de desamarrar as cintas, tirar a mochila, tirar o pneu, desamarrar mais cintas, tirar o saco de cima da mota, que deve pesar aí uns bons trinta quilos, e abri-lo. Claro que dentro do saco estão mais sacos que precisam de ser abertos e "inspeccionados"...
Desta maneira é natural que não tenha  ficado, à partida, bem impressionado com o país, confesso.

"Escapando" a mais outras duas paragens obrigatórias antes de chegar à costa, onde pretendia pernoitar, acelerei um pouco e quando perguntava indicações acerca de um local para ficar, eis que surge o principal personagem da minha curta estadia no país: o alemão (será assim tratado pois era assim que o chamava).

O alemão é um senhor na casa dos cinquenta, que vai viajando por África, sem saber muito bem para onde vai e sem ter quaisquer planos futuros.
Quando o conheci estava à três meses na Gâmbia (tinha até já alugado uma casa) a fazer sabe-se lá o quê e estava a tentar apanhar um barco que o levasse para a Argentina, ou talvez fosse continuar a viajar para sul em África, ou talvez não. A verdade é que o homem estava um pouco perdido, sem saber muito bem o que fazer; era assim que viajava.
 
Tinha estado em Bissau e de uma maneira geral tinha adorado a Guiné, apesar da avaria que teve na bomba de gasolina da sua KTM, que o fez ficar na cidade umas semanas.
(durante a minha estadia em Bissau, disseram-me na pensão onde estive que tinha estado lá uns meses antes um alemão com uma grande mota e que tinha entretanto chegado uma encomenda para o senhor, mas ele já tinha partido, não sabiam para onde, etc.
Não é que o gajo era o mesmo, estava agora na Gâmbia e a encomenda que ali ficou era a bomba de gasolina que tanto precisava...)


Já na Gâmbia, com cara de poucos amigos...


A bonita KTM do "alemão"


Bem, coincidências à parte, o alemão indicou-me um sítio para ficar e fomos beber umas cervejas juntos, uma vez que ele conhecia bem a cidade (três meses ali, podem imaginar).
Estávamos perto da "estância balnear" de Bakau, junto da vila de Serekunda, um local em minha opinião semelhante ao que de pior tem a vila de Albufeira no Algarve:  confusão, desordenamento de casas e hotéis, bares com esplanadas e discotecas, onde durante a tarde alguns ingleses mais velhos se passeiam em calções de praia, exibindo a suas grandes barrigas escaldadas.

Se no Algarve esse é um cenário feio mas tolerável o que dizer aqui na Gâmbia, um país tradicional, muçulmano, onde certas regras e condutas devem ser seguidas.
A mesma falta de respeito e senso vi no Senegal e principalmente em Marrocos onde ainda me encontro. Vejo aqui turistas que se vestem e comportam sem ter qualquer atenção aos costumes e hábitos locais.
Bom, isso terei oportunidade de comentar mais para a frente, mais para norte...  

Entretanto a noite chegou e a minha vontade de ficar mais uns dias no país não apareceu.
Durante a tarde tentei ver o mar, já que estava junto à costa e o certo é que não consegui. Toda a vista estava fechada por hotéis, embaixadas e outros edifícios e depois de uma boa volta com a Miss regressei desconsolado ao sítio onde fiquei alojado, rendendo-me ao descanso.

Já mais tarde fui comer com o Alemão a um restaurante local que era o seu preferido e depois fomos beber umas cervejas a um dos seus bares de eleição.
Eu tive a oportunidade de ter estado ao longo desta viagem (e de algumas outras que fiz à Ásia e ao Brasil) em bares e discotecas "pesadas" e quem me conhece sabe que gosto de ambientes "underground", daqueles sítios apenas frequentados por locais e para locais.
Gosto deles pela experiência de observar o tipo de gente que os frequenta, o que ali se passa, longe dos locais nocturnos feitos à medida dos turistas ocidentais;  sítios "exóticos", chamemos-lhes assim.
 
Aquele era um desses sítios: ficava no meio de um bairro, que estava sem luz pois trovejava e chovia, tudo estava naturalmente escuro e o bar consistia num espaço aberto com um balcão num dos cantos, onde aí uns cinquenta homens (quase todos com rastas) estavam sentados em cadeiras plásticas.
Todos bebiam, alguns já claramente tinham passado da conta e quase todos fumavam erva, uns directamente do cigarro, outros aproveitavam a nuvem que estava naquele espaço e que se sentia à distância.

Ficamos por ali umas horas a ouvir o som vindo de uma coluna completamente estropiada que estava em cima do balcão do bar (entretanto a luz voltou), enquanto o Alemão fumava com os amigos que entretanto tinha feito, erva que dava para encher o meu saco da mota. Eu bebei as minhas cervejas e observava o ambiente.
Entretanto pedi ao Alemão, que já estava com um amigo e uma amiga nova aos quais ia pagando cervejas e partilhando os bafos, que saíssemos e procurássemos outra coisa, algo "de outro estilo"...

Quando vinha para fora, um dos cinquenta rastas veio implicar comigo porque alegadamente o tinha empurrado, procurando confusão.
O que se passou a seguir não foi bonito e não me orgulho disso mas fiz o que senti que devia fazer naquele momento.
Algumas bofetadas e "agarranços" depois resolvi sair dali. Todos sabiam que eu tinha razão mas era sempre o estrangeiro naquele meio e tinha de sair. Além do mais aquele não era definitivamente o meu ambiente.
Acabei pouco depois a noite, dando algum dinheiro para "o jantar" à bonita amiga do alemão, dispensando-a de outros serviços e a ir dormir.
 
Não, aquele não era mesmo o meu ambiente. Tenho pena de não ter conhecido a Gâmbia como gostava e sobretudo de me ter ficado tão pouco daquele país (mesmo passando lá tão pouco tempo).
Ali não houve nenhuma nuvem que saísse de frente do sol, que me tivesse feito ficar.

No dia seguinte, poucos quilómetros depois, em Banjul (capital do país) apanhei o ferry para a Barra, a curta distância com a fronteira com o Senegal.
O ferry para cobrir uma pequena distância, a travessia do Rio Gâmbia, demorou quase duas horas. Nunca andei num barco tão grande a uma velocidade tão baixa: dava ideia que nadando tinha chegado primeiro à outra margem.
Mas também ali, não tinha ninguém à minha espera nem tão pouco nenhum sitio onde tivesse de estar.







Travessia do Rio Gâmbia


Até Dakar, a capital do Senegal, foram apenas algumas horas em boas estradas, com apenas um troço a lembrar outros países. Ali porém, eram apenas uns quilómetros de asfalto esburacado e confesso que tive até uma certa nostalgia por saber que a partir dali a estrada seria sempre boa até casa. Acabavam-se ali, naqueles 40 quilómetros, as estradas com buracos do tamanho de carros, troços com lama e terra vermelha; tudo seria, se assim o quisesse, claro, uma boa pista de alcatrão até casa.
Que pena, pensei... :)
     


Deixando uma girafa atravessar a estrada...:)
(os animais têm sempre prioridade)



Os últimos 40 quilómetros de buracos na subida da costa oeste de África
Vou ter saudades; a partir daqui já não tem mais piada...


As poucas pessoas que encontrei a viajar nesta região para norte não iam entrar no Senegal, preferindo contornar este país ao entrar directamente na Mauritânia vindos do Mali.
Segundo diziam, o Senegal é um país difícil para se viajar pois são bastantes burocráticos nas fronteiras (em relação aos veículos), os polícias de trânsito são chatos e muito corruptos e existe bastante assédio aos estrangeiros em todas as cidades, o que torna a estadia incómoda, para dizer no mínimo.
Outros iriam apenas atravessar o Senegal, uma viagem de muito pouco tempo, quase de raspão, sem visitar o sul e apenas com umas breves passagens por Dakar e Saint-Louis.
No meio desses companheiros de estrada eu era o que mais vontade tinha em conhecer o Senegal, sem muito saber acerca desse país.
Precisamente por não saber quase nada é que tanta vontade tinha de o visitar, podendo depois tirar as minhas próprias conclusões.

O que se pode entender por gostar de um país ou não?! Vistas bem as coisas, as experiências que temos nos países, as pessoas que aí conhecemos, o nosso próprio estado de espírito durante a estadia aí, são factores decisivos que nos fazem ficar com uma ideia mais ou menos positiva acerca desse local.
Vejamos o meu mais recente exemplo da passagem pela Gâmbia: passei um dia e uma noite no país, fizeram-me abrir tudo o que era saco em plena estrada, a suar por todo o lado (lembro-me agora que um dos polícias ainda me pediu para lhe dar a minha mochila...), em certas zonas mas turísticas, assim que abrandava a mota ouvia os gritos dos vendedores chamando-me para as suas lojas, comi mal, andei à porrada, vi ingleses da terceira-idade semi-nus a passearem pela rua, não vi a praia, todas as mulheres que vi à noite se vendiam por dinheiro, etc.
Se gostei do país??! Não, não me marcou a experiência que tive ali, mas acredito que noutras circunstâncias pudesse ter gostado: bastava por exemplo ter conhecido alguém interessante que o sentimento que tenho em relação ao país seria diferente.
Para concluir houve países que gostei mais do que outros e as razões vão para além do país em si (a sua paisagem, as pessoas, etc), sendo as experiências pessoais que vivi, as circunstâncias em que aconteceram e as pessoas que conheci, que me fazem guardar boas recordações desses locais.
Não se ofendam, deste modo, as pessoas que foram à Gâmbia e adoraram; ainda bem que assim foi.

Por outro lado, saí do Senegal com um sentimento bom no peito. Posso dizer que "gostei daquele país".
Afinal a polícia não é assim tão chata e nem tão pouco mais corrupta do que o resto dos países, a burocracia na fronteira não foi nada burocrática e além de não precisar sequer de visto, a entrada da Miss foi feita, das três vezes, preenchendo apenas uma folha e pagando um valor insignificante. Até os três dias que costumam dar para a mota ficar no país foi ampliado para dez, em cada uma das minhas entradas, o que foi suficiente.
Ok, o assédio dos vendedores é muito e um pouco agressivo mas aprendendo alguns pequenos truques são contornáveis sem muita indisposição.

Dakar é uma cidade fantástica, no meu ponto de vista (entendo que algumas pessoas tenham opinião diferente).
Eu gosto de cidades, confesso, e esquecendo um pouco o trânsito e confusão típicas de uma grande cidade, devo dizer que Dakar me surpreendeu pela beleza da sua estrada junto à costa (que fazia várias vezes por dia e noite dentro, sem me fartar), pelos seus edifícios coloniais bem conservados, pela intensa vida cultural (os bons espectáculos de música são diários), pela qualidade dos seus restaurantes e pela forma como os seus habitantes vivem a cidade (todos os dias milhares de pessoas a partir do meio da tarde vão correr para as marginais e praia, fazendo exercício em grandes grupos, passeando os cães ou apenas caminhando).
Vindo do sul, impressionou-me mais ainda a cidade, elegendo-a, sem dúvida, como das cidades mais interessantes que visitei em África.

Fiquei alojado num pequeno hotel da cidade onde conheci a Eva, uma espanhola que estava a passar umas semanas no Senegal, tendo acabado de chegar à um dia quando a conheci.
Chamou-me a atenção o facto de estar bastante incomodada com a forma como a perseguiam na rua os vendedores em Dakar e comentava com o empregado do restaurante do hotel que estava muito cansada daquilo tudo.
Confessou-me algum tempo depois que nesse momento estava com vontade de apanhar o avião e regressar a casa, mesmo acabando de chegar.
 
Acabámos por ir juntos à Ilha de Gorée e começou ali uma amizade interessante.
Entendo muito bem que seja difícil a certas pessoas encarar os vendedores mais agressivos em países como este. Posso dizer que hoje estou com bastante mais experiência na matéria e arranjei a minha maneira de encarar tudo isso, mesmo sabendo que não é a melhor e que perco eventualmente algumas coisas pela maneira "de poucos-amigos" com que resolvo essas abordagens.
Admito também que para um homem, pela forma naturalmente mais "agressiva" que tem a nossa imagem, seja mais simples fazer com que uma situação dessas não se prolongue por muito tempo, isto é, que um vendedor, uma criança a pedir dinheiro, ou canetas, ou rebuçados, ou água, ou gelado (como me aconteceu em Marrocos)  ou roupa ou qualquer outra coisa não nos siga, a nós homens, da mesma maneira como o faz com uma mulher, ainda por cima ela não souber cortar logo essa situação.
Acontece que a Eva pela sua natureza inocente e ingénua não o sabe fazer e chega a ser cómico ir atrás dela e ver todo aquele filme acontecer durante minutos, sem que ela consiga lidar com a situação.

Fui então o amigo que a Eva precisava para tornar a sua estadia suportável, ajudando-a nem que fosse pela minha "cara fechada" a afugentar os vendedores e para mim soube-me bem ter companhia, ainda mais tão interessante.









Imagens de Dakar


A Ilha de Gorée  fica apenas a alguns quilómetros de Dakar e apanhámos assim o barco que nos levou até lá.
Era domingo e connosco iam centenas de pessoas locais prontos para dar um mergulho nas águas transparentes e mornas da ilha.
Aconteceu-me algo que nunca tinha sucedido durante a viagem e quando já estava no barco, rumo a Gorée, percebi que a máquina fotográfica não tinha bateria...
Perdi então a oportunidade de fotografar a gente local que enchia completamente as pequenas praias da ilha e de registar a mistura entre a maioria dos habitantes de Dakar, a passar o dia de descanso na ilha, banhando-se nas águas e passeando pelo curta pedaço de areia (algumas mulheres usando saris, outras completamente cobertas) e alguns turistas passando, sem sequer ficar na cheia praia, mais interessados em visitar a ilha.

Pois eu não estava para grandes visitas, tendo decidido que voltaria no dia seguinte com mais calma e, depois de uma curta volta, fiz-me à praia tal e qual um habitante local, enganando um pouco o intenso calor que estava com uns mergulhos naquelas apetitosas águas.

Estávamos a almoçar num dos restaurantes no areal daquela praia, eu e a Eva, e falávamos acerca do comportamento de muitas pessoas no Senegal, vendedores e não só, pessoas que viam nos estrangeiros fáceis fontes de rendimento, tentando a toda a hora e de qualquer maneira tirar vantagem e ganhar algum dinheiro.
Qualquer turista (qualquer pessoa branca, seja ou não turista) é abordado sistematicamente na rua por um qualquer local, através de uma conversa amigável do tipo:

- "Olá amigo, como estás?, donde és?
   Ah gosto muito do teu país, vais ficar quanto tempo em Dakar, vais fazer o quê?
   Queres ver a minha loja?! Posso-te mostrar a cidade?!"

   etc. etc.

Ao fim de um dia em que ouvimos isto dezenas de vezes só queremos mesmo é estar fechados no quarto e não falar com ninguém...
Mesmo quando estava na praia em Casamansa, deitado a apanhar sol na areia lá vinham eles, vendedores de tudo e mais alguma coisa, guias de excursões para todo o lado, o que deixava obviamente incomodado. Sem contar com as crianças que apareciam por todo o lado, pedindo dinheiro.

A Eva dizia que se sentia muito mal com tudo aquilo e que não conseguia andar na rua sem ser incomodada. Tinha estado em Moçambique e nada disso se passava ali,  estando a comparar essas duas realidades, afirmando:
"o povo de Moçambique não tem nada a ver com este: são mais simpáticos, mais gentis, honestos e verdadeiros".
 
Eu dizia-lhe que é errado generalizar as coisas e que deveria ter cuidado a julgar os senegaleses e o próprio país apenas pela curta experiência de alguns dias ali e enquanto turista. Deveria também aprender a melhor lidar com as abordagens da melhor maneira para que essas não estragassem os seus dias de descanso ali e principalmente para tentar aproveitar o bonito país que é o Senegal.

Pouco depois vieram até à nossa mesa duas meninas oferecer à Eva um bonito colar. No primeiro momento ela recusou a prenda, julgando que era mais uma "armadilha", mas as meninas, muito tímidas, deram-lhe simplesmente aquela colar, uma vez que a Eva tinha falado um pouco com elas no barco e porque gostaram apenas dela.
Foi um gesto muito bonito de se ver e foi tudo o que a Eva precisou para sentir o Senegal e as suas pessoas de uma maneira diferente.
A partir dali sempre que a Eva se queixava das pessoas eu lembrava-a do episódio da praia.

Pouco depois, fomos uma vez mais agradecer às duas meninas pedindo-lhes para tirar uma fotografia. Elas, bastante envergonhadas foram pedir autorização junto da mãe e depois vieram contentes dizer que sim.




37ºC, boa temperatura para um mergulho


As duas meninas na praia da Ilha de Gorée


O dia de praia acabou mas no dia seguinte voltei para ver melhor a ilha, já sem a confusão do dia anterior e desta vez com bateria para a máquina fotográfica.
Despedi-me da Eva, que seguiu para norte e fui então mais uma vez até Gorée, dessa vez com o barco vazio, pois a semana de trabalho tinha já começado.
 
Gorée foi no passado um dos maiores centros de comércio de escravos de África, tendo sido habitada apenas quando chegaram os portugueses no século XV, começando por construir uma igreja e usando aquela ilha como cemitério.
Depois na época da escravatura, já com os franceses, estimam-se que ali foram comerciados muitos dos cerca de 15 milhões de escravos enviados para as Américas, a grande maioria homens em plena força de trabalho.

A iniciativa do tráfico de africanos coube a Espanha, que ocupando terras americanas, apercebeu-se da fragilidade da mão-de-obra indígena, da dificuldade de adaptação ao clima e execução de trabalhos duros por parte dos europeus. Desse modo, encontrou ali, no escravo negro, a solução para esta situação.

A "Casa dos Escravos", é na ilha de Gorée e em toda esta costa africana, um dos símbolo mais representativo da actividade negreira do passado.
Sendo construída em 1786 por comerciantes franceses, no piso térreo alberga um grande pátio rodeado de celas onde os escravos eram aprisionados, depois de serem separados por idade e sexo, antes de serem levados para a América. Nas traseiras, abre-se uma porta sobre o mar, a porta da "viagem sem regresso", sobre o ponto onde atracavam os botes que levavam os escravos até aos grandes barcos, ancorados ao largo.
Alguns dizem que a porta serviria também para atirar ao mar os cadáveres dos que não resistiam ao período de cativeiro.
No andar superior, fica a residência, confortável e luxuosa onde estavam instalados os comerciantes.
 
De resto toda a arquitectura da ilha é caracterizada pelo contraste entre as pequanas e sombrias casas onde os escravos eram aprisionados e as elegantes mansões dos seus mercadores.
O ar decadente dos majestosos edificos coloniais faz lembrar em certos aspectos a Ilha de Moçambique e caracteriza aquele lugar, tornando muito interessante visitar aquelas "esquecidas" ruínas.

Gorée foi classificada em 1978 como Património da Humanidade.




Viagem até à Ilha de Gorée








































Ilha de Gorée, um dos mais bonitos locais do Senegal


Regresso a Dakar


No dia seguinte despedi-me de Dakar e fui para norte, até Saint-Louis, a cerca de trezentos quilómetros da capital, já próximo da fronteira com a Mauritânia.

Localizado na foz do Rio Senegal, Saint-Louis foi a capital da colónia francesa no país desde 1673 até 1902 e de 1920 a 1957 serviu de capital à colónia vizinha da Mauritânia.

Hoje, depois de três séculos de história, é um lugar único pela sua arquitectura e cultura que ali se vive.
Pelo que dizem (e pude notar uma diferença clara em relação a Dakar) aqui na cidade vive-se de outra maneira em relação ao restante país. Saint-Louis tem uma identidade própria, muita marcada.
Dizem os seus orgulhosos habitantes que "ninguém vem sem se apaixonar pela cidade" e o que é certo é que é um local especial, preservando a arquitectura colonial.
Uma cidade que tem muitas semelhanças com outras tais como Havana, Salvador da Bahia, Cartagena e Nova-Orleães, tanto pela sua aparência como pela forte cultura musical.
Todos os anos em Junho acontece ali o maior festival de Jazz em África, o Saint-Louis Jazz Festival.
Aproveitei assim também para acrescentar uma boa colecção de música africana ao meu IPOD...

A cidade marca também o extremo sul do deserto do Sahel. A partir dali para norte a paisagem altera-se fortemente. A "Langue de Barbarie" é uma faixa de areia que vem desde Nouadhibou no norte da Mauritânia até Saint-Louis, com cerca de 25 quilómetros, separando o Rio Senegal do Oceano.
 
Acabado de chegar à cidade, com alguma sorte, consegui um quarto numa casa de uma senhora que aluga para estadias de longa duração. Uma fabulosa casa, vazia com vários quartos e com um terraço muito especial sobre a cidade.
Uma vez que era época baixa, em que muitos poucos turistas visita a cidade o preço conseguido foi muito bom e o local muito central.




A poucos quilómetros da cidade,
dentro do Parque Nacional  "Langue de Barbarie"













Várias imagens na cidade velha de Saint-Louis


A ponte Faidherbe, um dos símbolos da cidade



A cortar o cabelo e aparar a barba num espaço
no centro da cidade









Os coloridos transportes colectivos





As pirogas, muitas pintadas com os nomes dos líderes sufis,
estão espalhadas pela margem


A vista do terraço da casa onde estava alojado


Andava eu a tirar fotografias aos edifícios na parte antiga da cidade quando vejo a Eva, acompanhada de um amigo, a caminhar pelo passeio.
Que coincidência incrível... Passei então esses dias na sua boa companhia e aceitei o convite para ir almoçar com a família do rapaz amigo, que a Eva conheceu numa das barracas de venda de artesanato da cidade.
Foi das melhores tardes que tive no Senegal. Uma experiência genuína, em casa de uma família normal de Saint-Louis, num bairro dos arredores da cidade, já numa área com bastante areia, não muito longe da Mauritânia.
Melhores recebidos não podíamos ter sido, acabando por ter sido uma experiência muito marcante e que reflecte bem a hospitalidade daquele povo.
No final, depois de um tradicional chá, tirei umas fotografias à família e a senhora, mãe do rapaz amigo que nos convidou, ainda nos ofereceu uma fotografia de recordação.

Aquela tarde especial serviu como bom exemplo e "remate final" à conversa que tive em Dakar com a Eva, lembrando que pessoas genuínas há em todos os lugares e que apenas temos de dar o tempo necessário para momentos destes puderem acontecer e, claro, termos a sensibilidade para os saber apreciar.

Dias depois despedi-me definitivamente da Eva e segui para a Mauritânia.
Quanto a ela, ainda foi conhecer o sul do Senegal, onde me disse dias depois, antes de voar para Espanha: "he sido muy feliz".






Uma tarde especial passada nos arredores de Saint-Louis


No dia em que regressou a Espanha, a Eva enviou aos seus amigos este bonito texto que reflecte muito do que sentiu ao viajar pelo Senegal, as suas experiências e recordações.


"Ha llegado la hora de despedirme de Senegal..este pais que me ha ofrecido diferentes luces en un mismo dia. 
Donde he visto amaneceres llenos de vida y cielos oscuros que invitaban a la soledad.
Donde las calles huelen a incienso, jabon, musica y a gente que vive con gente, de la gente, entre la gente..
Me despido de este pais que me ha visto reir y llorar; donde es dificil escucharte y encontrarte... Donde hablar a veces no significa comprender; ni respetar...ni escuchar.
Donde todo se vuelve tan misterioso que es dificil saber donde estas. Donde muchos te ofrecen sus manos y las extienden de verdad...porque quieren alcanzarte mas alla de quien seas, porque ansian escucharte mas alla de donde vayas; porque intentan ayudarte mas alla de donde vengas.
Todo es facil y dificil; muchas veces luz otras veces sombra que pretende esconder la alegria que regalas.
Me quedo con todos esos momentos en los que he sido muy feliz, y la ternura ha llenado mi vista sin necesidad de abrir lo ojos..." 

Eva


A Eva e o amigo

1 comentário:

  1. Hola Gonzalo, soy Fernando, nos conocimos en Imilchil, Marruecos.
    Espero que estes disfrutando de la familia.
    Mi mail es fpm2401@gmail.com
    Espero noticias tuyas.
    Un abrazo fuerte

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