Da primeira vez que fui ao Gurué (sim, porque houve uma segunda, uns dias depois), fui de carro.
Deixei Africa a repousar da longa tirada desde Vilankulos e fui com mais 3 amigos até Gurué, às montanhas de chá, uns trezentos quilómetros a norte de Quelimane, na província da Zambézia.
Aí chegados, depois do descanso merecido foi altura de nos passearmos entre o chá. E folhas de chá é o que não falta nas montanhas do Gurué. Plantações a perder de vista cobrem toda a paisagem. Noutros tempos eram os portugueses a produzir a planta.
Pela dimensão da terra que cobre a plantação e pelos vários centros de produção e armazenagem este era com certeza um negócio próspero.
Hoje em dia, moçambicanos e indianos partilham as terras e o negócio do chá. As instalações permanecem as mesmas, lembrando outros tempos.
- "Tenho muitas saudades do tempo dos portugueses. Os indianos são maus.", confidenciou-me um dos velhos guardas de uma plantação.
De visita a um dos centros de produção vimos como se trata a folha até à embalagem do produto final. Existem nove tipos de qualidade e todos eles são para exportação. Índia, África do Sul e Europa são os destinos daquele produto.
O Gurué é uma pequena cidade como tantas outras em África.
No centro sobressaem as bonitas casas coloniais, o grande hospital e a pequena igreja. As rotundas, algumas mercearias e o cinema são de outros tempos.
Hoje as casas perderam o brilho que imagino terem tido, o hospital tem poucos meios, as mercearias pertencem agora a indianos e chineses e o cinema, dizem-me, está fechado. A grande maioria da população vive nos bairros, centenas deles, espalhados à volta da cidade.
Tudo nestes bairros se mantem em relação aos que já vi no resto de Moçambique. Crianças com fartura, centenas, milhares, sozinhas, rasgadas e sujas. Quase todas parecem felizes. A maioria brinca, outras ajudam a carregar água ou lenha, muitas transportam os irmãos mais novos às costas. Todos riem, uns olham-nos envergonhados, pedem doces, outros dinheiro. A maioria diz apenas "tátá" (olá).
As mulheres usam capolanas de cores vivas e bonitas. Os homens passam de bicicleta, o transporte mais usual em Moçambique. Cada vez há mais bicicletas (será este um sinal de desenvolvimento?). Vêem-se poucos carros e algumas motas chinesas.
Subimos até à "casa dos noivos", local conhecido pelas cerimónias de casamento no passado. No alto de uma das montanhas, depois de uma tortuosa estrada, ficam um conjunto de casas que seriam preparadas para receber as cerimónias de casamento.
Agora, pouco tempo depois do último guarda ter partido (por falta de pagamento) quase tudo foi destruído e vandalizado. Só a vista, sobre a cidade, no alto de tanto chá, parece não ter desaparecido.
Agora, pouco tempo depois do último guarda ter partido (por falta de pagamento) quase tudo foi destruído e vandalizado. Só a vista, sobre a cidade, no alto de tanto chá, parece não ter desaparecido.
No dia seguinte, depois da autorização necessária, subimos até à cascata. Uma queda de água fresca e limpa que está no alto de um dos centros de produção de chá. Mesmo se não existisse a queda, todo o percurso teria valido a pena. O verde das plantações a perder de vista, pequenas aldeias de gente local, árvores de bambu enormes, pontes artesanais atravessando pequenos cursos de água, o rio sempre presente, mágico. Um dos caminhos mais bonitos que fiz.
Lá do alto a vista é inacreditável. Apetece ficar. Depois de uns mergulhos estendemo-nos ao sol. Muitos habitantes locais, curiosos, iam-se deixando ficar, envergonhados a ver-nos ao longe. Os mais "corajosos" desciam até nós e ali ficavam, a ver-nos com toda a atençao, imóveis, com os olhos esbugalhados de curiosidade.
Um grupo de cinco irmãs, embora muito reservadas e até assustadas, aproximou-se tal era a sua curiosidade. Fui até elas e apesar do seu mau português (em Moçambique, ao contrário de Angola, é raro encontrar alguém fora de Maputo que entenda perfeitamente o português) conseguimos comunicar.
Tinham ido apanhar uma espécie de escaravelhos, colocado uma centena deles dentro de um garrafão e iam agora para casa.
Quiseram mostrar. Explicaram-me que seria o jantar daquela noite. Ensinaram-me a prepara-los para os comer.
- "Então e comer? Come lá um para eu ver" - pedi eu;
- Riram-se todas. "Naaaada, tem de pôri nu lume".
Descemos até à cidade no final do dia. Todo aquele ambiente único e com a luz de fim de tarde tornava tudo ainda mais mágico.
Tinha de ali voltar, de mota. Tinha de acampar naquele local, senti-lo uma vez mais, sem pressas.
Resolvi voltar sozinho, de mota, assim que regressa-se a Quilimane.
Depois do regresso a Quelimane despedi-me dos amigos e regressei ao Gurué. Uma vez que ia para norte optei por passar mais uns dias naquela cidade.
No primeiro dia, depois da viagem desde Quelimane resolvi ficar numa pensão. No dia seguinte, depois de concedida a autorização para atravessar o centro de produção, cheguei à cascata onde me preparei para passar a noite.
Claro que passado uns minutos de chegar ao local dezenas de habitantes locais foram dar-me as boas vindas. Animados com a mota (que "parece carro") deixaram-se ficar.
Enquanto não escurecia fui dar uma volta a pé nas redondezas com um "guia", um habitante local que não falava mal português e que me ia respondendo a algumas das perguntas que lhe ia fazendo.
- "Então mais velho, não existem muitas cobras por aqui, no meio deste chá todo?! Os homens que trabalham aqui não são picados?!" - perguntei.
- "Nada boss. Os cobra não faz confusão com nós", respondeu.
Depois de algumas horas a passear voltámos para o local, no cimo da cascata, onde iria montar acampamento.
Mal chegámos, uma cobra, verde brilhante, estava estendida junto da mota. Imóvel permaneceu sem que ninguém se aproximasse.
Pedi a minha mala com o equipamento fotográfico a um dos homens. Queria colocar a objectiva zoom, o "verdadeiro canhão" para registar a imagem.
Naquele momento duas dezenas de locais estavam ali, curiosos e atentos.
- "Vou dar tiro na cobra com esta pistola" - brinquei eu, mostrando a objectiva.
Muito atentos assustaram-se quando virei a objectiva na sua direcção e terei umas fotos.
"Isto é para tirar foto!!!"- esclareci.
Todos se riram. Entretanto a cobra, fugiu em direcção à água, desaparecendo no meio da corrente.
-"Querem música?" - perguntei eu.
O sorriso deles foi imediato e todos começaram a gritar que sim.
-"Mete a cassete da música do Malai" - pediram-me.
"Só tenho mesmo essa cassete, meu cota" - respondi.
De seguida acendemos uma fogueira, bebemos "aguardente" de fabrico caseiro e dançamos ao som de Bob Marley.
Ficámos umas horas a ouvir aquela cassete, bebendo aguardente e dançando à fogueira.
Despedi-me de todos e fui dormir.
Na manhã seguinte, antes das cinco da manhã, já com sol, alguns vieram dar-me um "feliz dia boss".
Agradeci e com o humor de quem dormiu pouco e acaba de ser acordado respondi:
-"Ok, vão é trabalhar".
Arrumei a "trocha", passei ainda de manhã pela plantação e tirei fotos aos homens que ontem bebiam e dançavam comigo, agora a trabalhar no meio do chá.
Despedi-me do Gurué e segui para Nampula, sempre por trilhos, pela estrada menos usada, em terra batida. Cheguei à cidade no final do dia coberto de poeira. Já tinha saudades do pó.
No dia seguinte estaria a arrancar para a ilha encantada. Queria muito ir à Ilha de Moçambique.